CRÔNICA DO DIA


Crônica do dia
( Marcus Ottoni )

 

Era apenas mais um dia como tantos outros que se tornaram passado em sua vida. Olhar o tempo com o mesmo olhar de sempre, pensar as mesmas coisas de sempre, querer o que nunca se conseguiria, sonhar sonhos com os mesmos desejos de sempre, tudo isso estava se tornando uma rotina que o incomodava cruelmente.

Mesmo assim, lá estava ele parado, pregado no chão de terra batida a imaginar uma fuga daquilo que passou a considerar sua “prisão voluntária”. Ali, em frente daquele enorme mundo de água, com marolas a enrolar o vento, ora vindo, ora indo, ele se propunha a dar um novo sentido na vida que carregava mundo à fora por mais de sessenta décadas e que a lugar nenhum o levara até então.
Pensava enquanto atirava pedras pequenas na água. Pensava enquanto tirava de sua mente as decepções colecionadas ao longo dos anos e com as pessoas que passaram por sua existência. Tudo ia se desenhando como um velho e repetido filme. Era preciso arrumar um jeito de limpar a mente e arejar os pensamentos para que as mesmas sequências indesejadas não permanecessem como memória eterna.

Rodou o olhar pelo ambiente e não se surpreendeu com a imensidão da solidão que o rodeava. Nada além dele e do oceano que rugia bravo como a cantar canções de piratas naufragados em suas águas misteriosas por onde habitavam sereias encantadoras e monstros marinhos assustadores. Era tudo ele e somente ele e o mar. Assim, o tempo foi correndo por seus pensamentos e fragmentos de recordações.

Por mais que se esforçasse não conseguia encontrar um desvio no seu caminhar que o tirasse da estrada que percorrera até aquele momento, e que não queria mais seguir por tal caminho. Fixou seu olhar na espuma branca na crista das marolas oceânicas, deixando-se acompanhar o movimento que elas faziam ao tocarem a areia molhada e se dissolverem com espirros de bolhas d´água estourando no nada. Era incrivelmente belo e misterioso o nascer, ser e morrer da espuma.

Sentado ali na beira do mar ele passou todo o dia. Não comeu, não bebeu, não se mexeu, não saiu de onde estava e só se deu conta que o dia acabara quando o sol mudou de lugar em seu corpo e começou a se esconder no horizonte contrário ao oceano. Lá, na linha onde o mar encontra o céu, um tom escuro de negro em construção ia devorando o então azul provinciano que dominara o céu. A noite vinha vagarosamente absorvendo o dia.

Então sentiu fome, sentiu frio, sentiu-se só... extremamente só. Pensou em levantar e sair dali. Mas ir para onde? Martelava a pergunta em sua mente. Mas também não queria ficar onde tudo tornou-se tão igual a tantos outros iguais de ultimamente. Piscou várias vezes como a querer adaptar a menina dos olhos ao novo tom da vida que chegava com a noite. Coçou a cabeça e olhou ao redor... Ele, somente ele, e a escuridão que lhe roubou o oceano da visão.
Levantou-se... as pernas doeram, o corpo todo doeu. A dor não tinha importância porque era insignificante se comparada com a dor que carregava ao longo dos anos na alma. Essa doía muito mais forte como uma dor que não se sente na carne. E com suas dores saiu do lugar onde passara todo o dia. Seus passos foram deixando na areia molhada as pegadas de quem busca por si mesmo no universo do desconhecido.

Passos e pegadas caminhando juntos em direção a quem procura encontrar o caminho que o levará a seu destino. Ou... outro caminho, quem sabe em outro lugar sem nunca mais estar sozinho.

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Uma manhã qualquer

( Marcus Ottoni )

 

Hoje eu até tive vontade de escrever alguma coisa, qualquer coisa que não tivesse o foco na política brasileira e, muito menos, nos problemas que afligem a sociedade e que causam transtornos e tragédias em alguns casos. Pensei em divagar sobre a chuva, que ontem caiu forte fazendo das ruas verdadeiros rios de água corrente. Talvez, falar do céu escuro com nuvens negras transformando a claridade do dia em negritude noturna com todos os mais de 100 tons de cinza.

Até pensei... e fiquei prostrado na janela olhando o sol nascer no Leste, rompendo as suaves nuvens que impediam a passagem dos raios solares, brancos metálicos com fieiras de dourado. Fiquei até me perder de meus próprios pensamentos e me encontrar onde não gosto de estar, nunca. Mas, lá estava eu entrando pé ante pé no labirinto da dúvida, da incerteza, da misteriosa sensação de que nada vale a pena, nem mesmo quando a alma não é pequena ou tão grande como dizem ser as almas dos poetas.
Um caminho sombrio, cheio de esquisitices mentais e repleto de monstros imaginários que assustam pelo simples saber que não existem, mas que nos acompanham sempre que entramos nessa zona litigiosa entre a realidade e a fantasia. São perigos que carregamos vida à fora, mesmo sem saber que os estamos levando dia após dia. Estão lá e por lá ficarão, acredito eu, até quando não mais estivermos aqui. São os cães negros a rosnar em nossas almas suas fúrias divinas de horror e pecado.

Uma coisa é certa: quando se entra nessa zona de desconforto é como mergulhar num gigantesco e monumental caleidoscópio de emoções inimagináveis e insuportáveis. A cada brilho, cada losango, cada espelho, cada queda, a mente apavora e o coração acelera. Não há como retornar por que se quer, só se volta quando a viagem termina e não nos compete determinar o tempo que ela levara e nos levará ao mais radical de todos os sentimentos que pode habitar uma alma humana: a solidão.

Não há um porto seguro nessa jornada mental. Não há ponto final nesse torvelinho de sensações desconfortáveis. Não há como não se deixar conduzir pela emoção que nos aprisiona, nos rouba a luz, nos torna frágeis pelo mesmo motivo que tentamos nos tornar fortes, sempre e eternamente. Não há caminho de volta, não há retorno à frente, não há sentido contrário a direção a que nos leva esse desespero insano de negros cães ladrando dentro de nossa alma.

Tudo é escuro e tenebroso. Tudo é calmo e assustador. Tudo é parte daquilo que alimentamos em nossa existência. Tudo é o nada em pura essência de martírio e penar. Nada é tudo aquilo que nos joga sem piedade na servidão da alma amargurada e do coração sentido. Viver não é ter esperança de dias melhores, de uma vida melhor, de um mundo melhor. Viver é o cárcere dos sentimentos que edificamos com a razão sobre a emoção e que nos faz escravos de um misterioso senhor de todos os desejos e atitudes.

Viver é mais do que estar vivo. É, talvez, acreditar que a vida não é um caminho que escolhemos por vontade própria ou pelo livre arbítrio, mas sim uma trilha pela qual seguimos sem mesmo saber que estamos caminhando sobre as pedras que foram polidas pelas sandálias de nosso inconsciente.

Não façam os negros cães de minha alma rosnarem além da ira que os alimenta.

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Roedores inteligentes 
  ( Paulo Estanislau )

 Eu compartilho da opinião dos defensores da tese de que os ratos são os animais mais parecidos com o homem. E são mesmo.  Deixemos esclarecido para que o ilustre leitor não se aborreça com a comparação, que a semelhança refere-se a sua fisiologia e, também, pelo aspecto imunológico se assemelhar ao do homem, isso conforme o Doutor Clarence Little.  Por isso testes são realizados com esses pequenos animais e não com os primatas, dos quais somos, apenas, uma pequena evolução.        

Não tratamos aqui da questão intelectual, muito embora, verdade seja dita, algumas ratazanas são tão inteligentes que até poderiam ser comparadas a certos políticos brasileiros.        

Para evitar que os homens de toga percam seu precioso tempo tentando avaliar a justeza, ou não, da comparação, mudemos, pois, a frase:  

“Certos políticos brasileiros até podem ser comparados às ratazanas mais inteligentes”. 

Não sei se ficou melhor, mas estou tentando evitar minha perda de tempo com idas aos tribunais, prestar esclarecimentos aos homens de preto, principalmente àqueles que gostam e têm o costume de defender os homens de pasta 007. 

Deixemos as ratazanas e voltemos aos ratos. Notadamente, assumo a possibilidade da existência de ratos inteligentes. Isso porque os que habitam na minha casa o são.

        

Outro dia, levantei-me no meio da noite para beber água e ao acender a luz da cozinha dou de cara com três desses bichinhos. Eles, que estavam comendo a ração do cachorro, me olham como se eu fosse um intruso naquele lugar e fazem menção de ataque na tentativa que os deixasse em paz. Para minha surpresa dois deles voltam à refeição enquanto um caminha em direção ao invasor ameaçando atacá-lo. Invasor no caso, eu. 

Recuei para trás da parede o que fez com que o pequeno animal se detivesse. Fiquei a vigiá-los pelo canto da parede. Surpreendi-me ao ver que um dos dois que degustavam a ração do duque, satisfeito, afastou-se ficando postado ao lado do que fazia segurança, este então, encaminha-se à ração, chegara sua vez de alimentar-se. O outro, por sua vez, fica na segurança, à espreita do invasor, vez por outra mostrando os dentes e fazendo um som ameaçador sempre que eu invadia o espaço aéreo para olhar se já haviam ido embora. 

Eu, com toda minha coragem e valentia, apaguei a luz e voltei para a cama com sede. Fui dormir pensando em uma forma de expulsá-los da minha casa logo que acordasse.        

Obs: “Caros amigos leitores, talvez seja conveniente não dar crédito a essa história. Até hoje, desde o acontecido, nem meus filhos, nem minha esposa acreditam. Seja na minha coragem, ou falta dela, seja na inteligência dos pequenos roedores”.


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Para sempre em ação

( Naldo Dourado )

 

Por este vasto mundo não sigo só. Igual a mim perambula um bando de gente. Andamos à procura de algo, não sabemos se à caça de comida, de dinheiro ou de roupa. Daí, quando nada encontramos furtamos uns aos outros. Me tomaram meu prato de comida e alguns trocados. Não

agi! Ao tentarem arrancar minhas vestes não deixei. Nu, como batalhar pelo meu sustento? Horrores iriam dizer de mim, já pensou? Por revidar apanhei, e muito!

 

Deixaram-me no chão agonizando e fugiram. Um senhor apareceu montado numa cadeira de rodas, embora comovido, nada pôde fazer por mim o pobre homem. Eu tentei erguer-me do chão na intenção de roubar-lhe a cadeira, mas em vão. As dores me impossibilitaram. Uma mulher na companhia de uma criança surgiu e ao pequeno comentava: “Não queira nunca ser igual a esse sujeito aí filho!” Como havia imaginado, a coroa me reconheceu; assaltei a casa dela em duas ocasiões. Ao sair ela atirou uma pedra em mim. Arrastava-me à procura de uma sombra quando ouvi a sirene de uma viatura nas imediações, num esforço tremendo alcancei um lixão. Fiquei escondido até cessar o barulho da sirene.

 

Passado alguns instantes deparei com um catador de lixo na sua carroça. Obriguei-o levar-me a um hospital, imediatamente. Partimos, e não demorou chegamos ao hospital. Ao descer da carroça arranquei dez reais do bolso do coroa e ele não viu. Adentrei ao hospital. Após esperar por quase duas horas, fui atendido. Duas costelas minhas haviam sido fraturadas, fiquei internado. No dia seguinte, ainda no leito hospitalar, fui passado em revista por oito policiais. Os canas levaram meus dez reais e recolheram-me à prisão.

 

Já recuperado das fraturas, tramei com quinze colegas de cela a nossa fuga. Por mais de dois meses escavamos um túnel e daí fugimos. Livre porém, estou eu aqui pronto para mais uma vez entrar em ação. A você peço licença, vou-me retirar. Acordei mais uma vez atrasado, vou encarar um chefe mal humorado. À mim deseje sorte, por favor!

 

Fui!  


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O filósofo

( Paulo Estanislau )

 

  

De filósofo e louco todo mundo tem um pouco. Pode não ser essa a forma mais usual do antigo dito popular, mais foi essa a impressão que nos deixou certo cidadão que, no setor comercial, em frente a escada do metrô, discursava para transeuntes que corriam para o trabalho. A sua eloquência, mais que o assunto, aguçava a curiosidade de alguns menos apressados, inclusive eu, que paravam para lhe dar ouvidos.


Para alguns, aquele era mais um louco, era o que indicava sua aparência. Cabelos longos e desalinhados, calça amarrotada e rasgada na altura do joelho, paletó que havia ganho, certamente, de alguém bem mais alto e mais forte que ele e velhas sandálias havaianas. Para a delicada e humilde setuagenária, que estava bem ao meu lado, ele era um filósofo. Se os ilustres amigos estão achando que esqueci da camisa, não, não esqueci. Quem esqueceu de vestir foi o cidadão que discursava para a massa. Para ele, certamente, quinze pessoas já era multidão. 


Discursando sobre Alexander Graham Bell, dizia:

 

--- Fosse Graham Bell uma pessoa má intencionada, inventaria o telefone para fazer acordos e promessas sem ter que olhar nos olhos daqueles com os quais fazia acordo, ou para quem fazia promessa, e depois iria traí-los.

--- Fosse o Graham Bell um corrupto, inventaria o telefone para negociar de forma mais ágil, maracutaias, intermediação de cargos para parentes e pedidos de presentes para esposas, amantes e demais aparentados, sem ter que reunir-se às escondidas com outros iguais.

 

--- Fosse Graham Bell um ladrão, inventaria o telefone para comunicar-se com outros comparsas, discutindo planos de desvios de verbas, roubos e assaltos aos cofres públicos sem que precisasse encontrá-los pessoalmente.

--- Mas não era. Nada disso ele era. Graham Bell era um agente de informação. Inventou o telefone, a pedido da Polícia Federal, para pegar no pulo, os mal intencionados, os corruptos e os ladrões a exemplo do que está acontecendo agora com pessoas bem próximas do governo.

 

De repente parou e alertou ao seu público:

 

--- Gente, vamos dispersar. Os homens tão chegando. São os inimigos do Graham Bell.

 

E saiu apressado entre os transeuntes.


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Os que em mim habitam

( Marcus Ottoni )

 

 

São tantos aqueles que em mim habitam que muitas vezes nem sei ao menos quem sou.

 

São muitos, e diversas são suas manifestações. Alguns mais antigos se revelaram há muito tempo, quando eu ainda sorria inocentemente do mundo que me cercava. Chegaram ou despertaram em meu interior ainda pequenos, tal como eu naquele tempo e comigo foram crescendo pelo correr dos tempos.

 

Outros vieram mais tarde, sem pressa em inteirar-se de como eram as coisas pelo meu interior. Vieram e se puseram a disposição deles mesmos e assim ficaram manifestando-se, vez por outra, e sempre, quando eu me via diante de algo inusitado, desconhecido e desafiador.

 

Vieram mais, algum tempo depois. Da mesma forma foram se instalando vagarosamente como a medir os espaços que restavam em minh´alma, ou quem sabe, a colocarem-se sem conflito entre os tantos que já por lá existiam e habitavam com meu consentimento. É bem verdade que muitos se fizeram por causa de momentos ímpares, exclusivos, únicos. Mas nem por isso me abandonaram depois que tudo tornou-se normal novamente.

 

Chegaram em todos os tempos e de todas as formas. Desejaram de tudo e tudo tiveram. Foram o que foram e são hoje o que são. Não me abandonaram, apenas adormecem e quando necessário despertam como sempre despertaram, sem traumas, sem culpa, sem pecados.

 

Mas o que mais me desespera é aquele que chegou recentemente, no tempo em que expuseram meu coração ao mundo humano, quando abriram meu peito e nele mexeram, a costurar novos caminhos para o vermelho que por ele corre e escorre por todo meu corpo. Chegou timidamente, como a temer o que sua presença acarretaria. Seguiu as batidas contidas de um novo pulsar, de um novo desaguar de calmaria em mar de turbulenta novidade. Ficou por tempos a examinar a lentidão do fazer quieto, do deixar, do se dar sem se perceber, do perder para viver e conhecer.

 

Instalou-se como menino carente que se aninha junto a outro ser, buscando o calor e a solidariedade da pele estranha, desconhecida, amiga. Ficou assim e assim não está mais. Mas permanece manifestando-se calmamente, com a mansidão da sapiência e a revolta da insensatez. É lúcido como criança e fugaz como lobo selvagem. É doce como o amor e bruto como todas as paixões incontidas. Sofre também. Chora silenciosamente quase todo o sempre. Ri, é verdade, mas não o riso aberto, largo, explosivo, e sim um riso reservado, pensado e pouco festivo. Mas ama, e como ama. Ama tanto e a tudo, que seu amor passa dos limites e se faz prisioneiro do próprio amor que sente por tudo e todos.

 

É consciente, extremamente exigente consigo mesmo, não comigo. Mas sua intransigência me atinge quase sempre. Me torna insensato, desprotegido, alvo fácil dos sentimentos negros da alma que recebemos quando chegamos ao mundo. É inteligente, preparado, qualificado. Mas também o é arredio, solitário, maquiavélico, malvado, “perdido” como se diria na gíria corrente. É mais que posso imaginar, do que posso sentir. Está além do que conheço e se faz existir porque desconheço qual a mão que o introduziu em meu ser.

 

São tantos os que habitam em mim, que nem ao menos sei quem sou quando se deixam perceber. Como agora, não sei se sou eu quem escrevo ou se é algum daqueles que em mim habitam. Não sei se é um dos que cresceram comigo, ou se é aquele que em mim chegou quando meu peito se abriu pela dor. Mas sei que não sou eu quem te escreve agora.


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Um homem da noite

( Pablo Autamowar )

 

 

 Sei que já contei por aqui histórias de Mico, fiz até citações iguais as que faço agora, mas nunca é demais alertar para esse infeliz acontecimento: O Mico. Todos cometem ou pagam. Que atire a primeira pedra quem não cometeu o seu. Se não cometeu ainda, é melhor esperar, não atire agora, por menor que seja o pedregulho.  Ele não distingue sexo, faixa etária ou classe social. Todo cidadão ou cidadã terá o seu para contar aos filhos e netos, não tem como fugir. Posso até estar sendo chato com essa insistência, porém, serve como alerta para que você vá se preparando para um dia, sem muito constrangimento, assimilar o seu.

 

Mico não dói. Mico constrange, chateia e aborrece, mas passa. Se questionado sobre qual a melhor definição para o mico, diria o poeta Luis de Camões:

 

“É ferida que dói e não se sente; É contentamento descontente. É dor que destina sem doer”.


Eu já cometi os meus e, possivelmente, cometerei mais alguns. Entretanto, quero aqui questionar e protestar por um que me foi creditado pelos amigos Cição, Lili, Nunes e Pedrão, colegas de trabalho, que  não cometi. Teria sido um, ou mais um, se a história contada por eles fosse verdadeira. Não foi mico por um único detalhe, eu jamais pronunciei a frase: “Sou um homem da noite”. Não naquela, ou até aquela noite.

 

Acontece que nós, que trabalhávamos no período noturno (16:00 às 24:00 h), no CPD do banco, costumávamos às quintas-feiras esticar o nosso horário, nunca ultrapassando as quatro da manhã e com o consentimento das respectivas esposas, é claro.  As sextas-feiras estavam reservadas para a família. Sexta é dia de Lobo Mau e elas não nos deixavam sair sozinhos. É bem verdade que alguns, por questão de segurança (ou insegurança), faziam questão de acompanhar as esposas nesse dia.   O destino, nunca era pré-estabelecido, e as possibilidades de escolha eram poucas, pois àquela hora da noite só os bares tradicionais da cidade estavam abertos.  Beirute, Arabesk, Chorão e uns poucos outros, eram as opções.

Nessa noite, como sempre acontecia, escolhemos democraticamente por maioria e com os devidos questionamentos sobre o local, ir ao Beirute. Não que o bar não fosse legal, era e é muito bom, com bons tira-gostos e cerveja gelada. Os questionamentos ficaram por conta da democracia e liberdade existente no local. Lá se podia (o tempo do verbo está, apenas, em consonância com o tempo da história) namorar sem constrangimento, mesmo que o namorado ou a namorada fosse do mesmo sexo, evidentemente, mantendo o devido respeito ao ambiente e demais frequentadores. Só beijo na boca e carinho. Eleição ganha, decisão cumprida. Fomos ao Beirute. Cerveja gelada, costelinha de porco, quibe recheado. O que mais queríamos? Foi pra isso que nós fomos. Desopilar a cabeça. Falar de futebol, criticar o governo, comentar a respeito dos casais apaixonados do Beirute, sem preconceito é claro. Só não se podia falar do serviço.


Como em bares as regras são poucas e mutáveis, acontecia de alterarmos, mesmo que só um pouquinho, as nossas próprias regras. Olhar, não tira pedaço de ninguém. Certamente essa frase foi criada por alguma mulher. Alegremos então os nossos olhos. Numa dessas pesquisas olhacionais, nos deparamos com dois olhos castanhos claros, em um rosto bonito, de pele morena, espreitando nossa mesa. Com ela mais duas beldades.  O fato delas terem olhado já elevara o nosso ego à dimensões inimagináveis. Pensamos, vamos convidá-las para nossa mesa. Alguém comentou:

 

— Elas são três, nós somos cinco.  

A resposta foi imediata e aniquiladora de quaisquer pretensões:

— E daí, nos vamos só beber e conversar. Daqui à pouco temos que ir pra casa.

Decisão tomada, vamos convidá-las para a mesa. Agora só restava saber quem iria fazer o convite. Nenhum parecia ter coragem suficiente para tal façanha. Até que decidiram:

 

— Piupiu, vai lá que a morena está olhando é pra você.

 

A morena era aquela de olhos castanhos claros, cabelos encaracolados, rosto bonito, pele suave. Diante de tantos argumentos, criei coragem.     Fui! Não sem antes sorver um copo de cerveja, inteirinho. Pernambucano que se presa, não vacila, nem fraqueja. Lá fui eu, cheio de empolgação. Afinal de contas, com um sim teríamos a conta divida entre os cinco, com um não, o fora seria, da mesma forma, socializado. Eu estava sendo apenas o emissário do convite. Aproximei-me da mesa em que estavam, educadamente dei boa noite, embora já fosse quase dia, e perguntei se desejavam fazer-nos companhia. Antes que respondessem, a morena sugeriu que me conhecia. Eu, gentilmente respondi que era possível, pois eu saía algumas vezes, e completei dizendo que trabalhava em um banco do setor comercial sul, numa tentativa de ajudá-la a lembrar de onde me conhecia. O que de momento, não surtiu efeito. Delicadamente, uma das amigas nos interrompeu agradecendo ao convite, não poderiam ir pois aguardavam alguns amigos.

Voltei para a mesa e fiz o relato, tal qual acontecido. Os colegas da mesa, e trabalho, transformaram a parte da frase em que dizia que saía algumas vezes  em: “EU SOU DA NOITE”. Continuamos a beber, beliscar e eu, a ouvir gozação.

Os amigos delas chegaram, beberam e quando todos iam embora, de passagem por nossa mesa, a morena aproximou-se e disse recordar de onde me conhecia. E perguntou:

 

— Você não é o esposo da Sheila?


Diante da a minha resposta afirmativa, completou:


— Eu trabalho com ela.


Elas se foram e nós ficamos. A gozação continuou. Por muito anos fui responsabilizado pela não aceitação ao convite.


Até hoje, para aqueles amigos, eu sou “Um homem da noite”.


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AMIGOS... NOVOS & USADOS

( Cesar Athayde )

 

 

Era só escuridão. Caminhava lentamente e por mundos desconhecidos. A guiar-me somente uma pequena vela iluminava o caminho. Extensa estrada que mais parecia um muro sem fim.

 

Andando por andar, vim conhecer-te, fazia frio, muito frio, e para completar chovia. O vento era lancinante. Ao passar por ti, vi que estavas ensopado, doente e faminto, mas o pior de tudo era que vivias na maior escuridão. Ao teu lado somente trevas, negras e feias trevas.

 

Comecei a olhar-te e lentamente aproximei-me... Agasalhei tuas mãos nas minhas e reparti o meu pequeno pedaço de pão contigo. Rasguei minhas roupas, que por si só já eram insuficientes para matar meu próprio frio, e fiz uma improvisação de agasalho para ti. Agarrei teu corpo alquebrado e encostei-o no meu para dar-te calor. Tentei curar tua doença cedendo para teu corpo um pouco da minha já insuficiente saúde... E, numa derradeira demonstração de caridade... Dei à tua mente perturbada a LUZ que faltava!

 

Seguimos, eu sentia fundo na carne o vento gélido e cortante, sentia na cara os pingos fortes da chuva que caía sem parar um instante, eram tão fortes que chegavam a machucar. Minha vista começava a fraquejar, e eu sentia a quentura da febre comer até a minha alma... Mas eu não vacilava e continuava a fornecer tudo que precisavas para viver... Eu era o teu raio de sol!

 

De minuto em minuto, eu te abraçava numa louca tentativa de dar-te calor... Cheguei mesmo a carregar-te em minhas costas por um longo tempo, e quando deixava que caminhasses sozinho, não deixava que o fizesse descalço, para isso dava eu a ti as minhas sandálias... Eu caminhava descalço, sentindo os seixos rasgarem as solas dos meus pés...

 

Eu seguia feliz contigo ao meu lado. Sentia-me forte, e a sensação de abandono que sempre acompanhou-me havia sumido. Identificava-me contigo, através do brilho faminto de amor que teus olhos deixavam transparecer... E eu fui caindo lentamente na armadilha preparada pelo amor... Começava a amar-te loucamente.

 

Seguíamos, segundo a segundo eu enxugava teu rosto, abraçava teu corpo... Rias, com um sorriso angelical... O vento vinha me contar certas coisas a teu respeito. Dizia-me ele que já te conhecia de outro lugar... Eu procurava não ouvir. Tapava os ouvidos e te abraçava... Era o amor!

 

O frio aumentava rapidamente e os papéis inverteram-se... O nu agora eu ei que num gesto desvairado de amor, cobrira teu com os meus últimos trapos. Minhas forças estavam no fim, mas eu continuava a te iluminar... Lembro muito bem, quantos perigos enfrentei por ti... Sem falar nos sacrifícios.

 

A minha luz começara a apagar; embora eu não mais tivesse medo de ficar no escuro... Eu te tinha ao meu lado, e não queria mais nada. Tu rias, e eu me perdia no teu sorriso lindo. O tempo passava, e ao longe, como num passe de mágica, surgia uma fresta no horizonte... Era uma outra fonte e luz...

 

--- Olha, olha lá é luz... --- Eu pensei que agora começaria o nosso paraíso... Quanto engano...

 

Eu pulava de felicidade... Já sonhava viver adorando-te na beleza do sol; em ver teu corpo imerso nas transparentes águas do rio... Eu ria e chorava ao esmo tempo... Te abraçava e te beijava numa explosão de felicidade... Finalmente a luz, maravilhosa e linda... Eu contemplava tudo no maior dos espantos... Foi quando reparei em ti e levei um grande susto... Tu me olhavas com uns olhos que queimavam de ódio, um brilho tão forte, que até matou todas as plantas ao redor... Tu eras lindo, louro, dos cabelos encaracolados, teus olhos eram tão azuis, que ate o azul do céu era feio perto do teu, tua pele era tão alva como os lírios... Eras lindo, parecias com antigas figuras de anjos do meu esquecido catecismo... Fiquei tão feliz com tua beleza, que esqueci de me reparar, e ao tentar me aproximar de ti, senti que te afastavas com nojo... Foi aí que eu comecei a tudo entender... A luz que te dera, apagavas sonhando com luzes maiores e mais altas...

 

Tu me abandonavas neste mundo tão lindo, tão cheio de vida, um mundo lindo demais... Mas que sem ti era igual ao meu antigo mundo

 

Eu estava transtornado a pensar como é que pode uma pessoa ser tão ingrata a ponto de desprezar que te matou a fome e o frio, quem te deu luz e calor... Tu agora desprezas, sem pensar que poderás vir a precisar de alguém outra vez.

 

Não faz mal, podes sair por aí e fale mal de mim; pois quem sou eu para julgar-me com direitos sobre ti pelo simples fato de ter feito de ti um homem.

 

Continuarei só, apenas mais amargurado e muito mais desiludido, passarei a escutar com mais atenção uma canção que diz: Preciso aprender a ser só...

 

Eu um dia dei luz a ti... Se me pagas com trevas, eu aceito e te dou o meu perdão... A ingratidão é uma faca de dois gumes. Hoje me feres, mas espero não saias ferido amanhã...

 

 

MORAL DA HISTÓRIA:

Quem um dia te deu luz, pode agora precisar um pouquinho dela. Olha em tua volta e reparas se quem te ama não está a precisar...

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E Jackie partiu... foi para as Gerais com Fred e Coisinha

(Marcus Ottoni)

E jackie partiu. Deixou meus olhos e escondeu-se na minha memória. Levou consigo Frederico, o coxinha bombado, e Coisinha, o xerife malandro do pedaço. Mas deixou Salsera, a irrequieta e estressada de muros e quintais. Assim fico eu com eles na mente e com ela no dia a dia de um novo tempo, em um novo lugar. 

Partiu para as Gerais onde a lembrança de bons tempos me assalta vez por outra me levando a morros e caieiras juvenis onde excursões pela mata rasteira do que já foi floresta atlântica e jogos de futebol amolecados fizeram minha felicidade quando ainda nem tantas marcas pelo corpo eu tinha. Mas foram e já devem estar lá, nas Gerais, entre as montanhas mineiras, os vales, as matas resistentes, os rios, córregos e poços pouco profundos, mas que de lá saiam monstros imaginários e batalhas homéricas entre piratas e soldados de qualquer rei pançudo.

Deve estar agora, penso eu, a olhar o horizonte das Gerais cheia de esperanças de um novo tempo que deverá construir em seu novo lar. Ela, Frederico e Coisinha, trio inseparável desde os tempos da morada por detrás da Caixa Econômica, logo ali em Igapó. Lá, também viveu Jujú, que partiu para o “valhalla” das gatas além galáxias onde habitam deuses mitológicos e heróis com martelos e trovões. Foi lá, também, que nos aproximamos como gente e como seres humanos solitários, não no “Valhalla”, mas em Igapó... 

Antes, nos achamos, cada qual no seu cada qual, na ante sala da gráfica de Pedro Fausto numa manhã que se fez primeira de outras tantas. E foram tantas manhãs, tardes e noites que os dias se perderam numa conta sem fim de risos e raivas, aconchego e solidão, idas e vindas, próximos e distantes. Passaram-se os anos e meses seguidos ficamos mudos um e o outro. Curtimos juntos o dia escurecer, o amanhecer revelando o sol, a noite caindo sobre o mundo ao sul do Equador, assistimos filmes, temporadas e séries, bebemos cervejas, comemos pipocas, assamos peixes e carnes, falamos disso, daquilo, de outros assuntos, de tantos assuntos e nunca falamos de nós. 

Na verdade, falamos. Quando falamos de nós, não nos entendemos e por pouco quase colocamos o cada qual de cada um a perder o rumo e se desmantelar num oceano de queixumes solitários e sem futuro, porque não havia outro futuro para nós, eu e Jackie, a não ser, ser o que somos um para o outro: almas irmãs que se gostam sem querer se ter e não se tendo, se completam porque tem entre si a cumplicidade do querer bem sem querer mais nada do que o próprio bem querer de quem quer bem porque bem feito fica. Ponto...simplesmente. 

Assim vivemos por longos meses juntos sobre o mesmo teto na companhia de Frederico, Coisinha e Salsera. Éramos, e acho que ainda somos, uma família. Cada qual no seu cada qual e todos juntos num mesmo “cada qual coletivo”. Horas, dias, meses passando por nós e nós atravessando por eles como aliados de uma mesma causa que nos fazia mais fortes na medida em que descobríamos, dia a dia, que o que mais une as pessoas não é físico, material ou pontual. É a universalidade da cumplicidade solidária que aproxima, une, protege e faz nossa alma crescer cosmicamente. 

Jackie partiu... levou Frederico e Coisinha. Ficamos eu e Salsera. Ela e eles nas Gerais, eu e ela na província potiguar. Não deixam saudades e nem levam saudades. Porque saudade é sentimento de apego, de posse, de domínio, coisa que nunca tivemos, embora eu goste de colecionar “tranqueiras” e Jackie não. Ficam na lembrança porque lembrança é desapego, consciência, liberdade. O que sempre fomos: livres e conscientes de que a vida é um constante e eterno desapego. 

Longa vida nas Gerais para Jackie, Frederico e Coisinha. Aqui, eu e Salsera abriremos muitas cervejas e riremos dos dias que virão... 


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Paciência tem limite
( Marcus Ottoni )

Era uma dessas manhãs chuvosas, essas manhãs que logo no despertar prometem um aguaceiro dos diabos e junto a um vento frio pior do que navalha.

João era um bom trabalhador, e sempre condenou a preguiça – Forma impatriota de se viver – dizia ele. Porém, naquela manhã, João contestava a ideia de levantar-se e ir trabalhar. Não que ele houvesse aderido a preguiça repentinamente, não.  Só que naquela manhã, como acontece com todo mundo em manhãs de frio e chuva, João relutava, brigava e se conchegava mais ainda na cama, procurando por entre as cobertas um pouquinho de ânimo, um pé de força ou mesmo uma ponta de coragem para jogar-se na luta do dia-a-dia com aquele tempo.

O rádio do vizinho já anunciava, a bons sons, o programa da 07:15h, e isso torturava, incomodava e despertava o João. Meio desanimado, ele jogou-se fora da cama. Espreguiçou, esfregou os olhos, as mãos e coçou a cabeça irritado. Sete e quinze, já era hora. Patrioticamente, bocejou, espantou o resto de sono que saíra da cama junto com ele e dirigiu-se ao banheiro. Abriu a torneira do chuveiro e esperou que a água esquentasse. Nada. Fechou, abriu, fechou de novo, abriu novamente. Nada. Olhou para o bojo do chuveiro – Seria um defeitinho leve ou daria muita dor de cabeça? – Pensou. – Não, talvez a chave estivesse desligada. – E pensando na água quente, esticou o braço e segurou a pequenina ponta preta que sobressaia do bojo do chuveiro. E, exatamente às 7h e 23min, João ficou eletrizado, parado, boquiaberto, cheio de raiva. Gritou. Gritou tão alto que acordou de uma vez por todas. – Aos diabos o banho. Não tomaria banho nem de água fria nem de água quente. Iria trabalhar sem tomar banho. Afinal, muitas pessoas fazem isso. – Enquanto assim pensava, vestiu-se.

João preparava o seu dejejum. Colocou o leite para esquentar e apanhou o pote de manteiga. Vazio. Mas havia manteiga, ele sabia, pois ele mesmo comprara. Abriu a geladeira e começou a procurar, mexeu, remexeu, virou, revirou e nada de pacotinho de “claybom”. Tudo bem, tudo bem, tomaria o leite com pão sem manteiga. E lá foi o João apanhar o pão. Pão! Aquilo não era pão, ou melhor, aquilo já havia sido pão a uns quatro dias atrás, agora era pedra. Aos diabos o pão e a manteiga, tomaria só o leite. Realmente tomaria. João esquecera o leite no fogo e ele havia fervido e derramado todo. E isso ferveu também a paciência do João que saiu sem saber como, nem por onde.

Lá fora a chuva caía sem cerimônias, grossa e fria. E o João, no calor de sua raiva, esqueceu o guarda-chuva e o agasalho. E o frio entrava corpo à fora.

João apanhou um pedaço de jornal velho que havia servido de guarda-chuva a outra pessoa e que agora estava jogado debaixo do bloco, cobriu a cabeça, acendeu um cigarro na esperança de acender também um calorzinho, pequeno que fosse, mas que o ajudasse a chegar até a parada de ônibus e ganhou a rua. E ganhou a rua com frio, com fome e com o orgulho ferido pelos contratempos do despertar numa manhã chuvosa.

No ponto de ônibus, uma “ex cobertura” de 1,5 metro de comprimento por 2 de largura, João procurou espaço para se esconder da chuva. Porém, a maioria das pessoas que ali se comprimiam também pensavam da mesma forma que o João. E por isso, o máximo que ele conseguiu foi uma meia carona em uma sombrinha de uma senhora gorda e alegre que, bem verdade, não parava um só minuto quieta e isso colocava o colocava, por diversas vezes, debaixo de goteiras saltitantes.

João, apesar de estar de estar molhado e com frio, estava fervendo, bem quente, espumando de raiva quando surgiu o ônibus. Lá vinha aquela carroceria velha e desengonçada, arrastando-se pelas poças d’água e arrastando para o seu interior, um sem fim de pessoas que acordaram dispostos a trabalhar num dia chuvoso.

- Pronto, logo estarei no trabalho e lá poderei fugir da chuva, matar a fome e esquecer os contratempos dos tempos atuais - Pensou João.

O ônibus chegou e parou justamente em cima de uma grande poça d’água bem na frente do João que foi obrigado a recuar, cedendo assim o seu lugar privilegiado à multidão que invadiu o coletivo. Empurra, aperta, espreme, belisca, catuca, morde e vai entrando gente naquela lata velha. João é o último e com bastante esforço consegue apoiar o pé no batente da porta. Lá dentro o bolo se formou na roleta e João está como pingente quando o ônibus arranca. Ele vacila, baila no ar e cai esparramado na poça de lama. Não, era o fim! João levantou-se, escorreu a lama da roupa, olhou para o povo que o olhava também entre risos escondidos e expressões de pena e gritou:

- Chega! Deu fim na minha paciência!      

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Essência de um mundo perturbado

( Naldo Dourado )


Atalhos com fim e sem fim no início da viagem. A nave transbordada de bonecos de cera rompe a barreira do sonho mortal. Ao descer cai, os mares se fecham em ondas, em revolta com a morte do siri causada pelos homens de olhos tristonhos e avermelhados. Chuva de areia cai do céu na terra encharcada pelo sangue das baratas mortas. O eco do estampido das ondas bate na porta do céu que se abre em chamas. O dinossauro engole a estrela pendente que despenca na superfície da terra dos gigantes. O elo da lua transborda de luz viva dos vivos olhos da serpente platiúra, enrodilhada, chorando a morte da borboleta de asas azuis, morta a socos de pontapés pelo mosquito comedor de insetos e roedor das unhas das plantas carnívoras semeadas no jardim da encosta do horizonte declinado.

Um vendaval de sal serpenteia a floresta na busca de sombra das sobras dos carvalhos mortos. Um visgo de seiva arranca os fios de cabelo do vento condutor de ogivas perdido na imensidão do espaço guiado às mãos ocas e frias. Um bando de moscas varejeiras pousa na carne necrosada do lagarto arbóreo, reduzido a pedaços sobre a guilhotina manuseada pelos primatas em trajes de couro, do couro cabeludo dos aborígenes, salvos da fúria da vida sentenciosa. No topo do mastro de cabedal de ouro a cigarra pranteia a morte do dia numa noite de bodas em que as corujas cantam melodias aos cães guardiões e salteadores do castelo de vidro erguido no alto da pedra de pontas finas e afiadas.

O auspicioso grito do fogo eclode da garganta negra da caverna expelindo fagulhas mortas e tortas, sufocadas pela fumaça das fezes da terra, prensadas às pancadas pelos pés dos caboclos de dentes podres e pés palmados, agasalhados no sapato de bico fino, costurado a fios de ouro pelas grossas mãos das carpideiras de aves mortas. A traça corrói o pergaminho com o código decifrado do autor da vida, já sem vida, revelando-se inquieto com as pulgas subindo-lhe na pernas, causando-lhe cócegas entre os dedos de unhas crescidas e entre os fios de cabelo desgrenhado, encoberto pelo chapéu de abas largas, preso à cabeça por duas tiras de couro retiradas do lombo de um animal estranho, capturado no jardim de espinhos enquanto fugia da sombra transparente da nuvem de asa depenada na noite de lua cheia de cores negras opacas.

O querubim planado no alto do círculo de bordas tecidas com linhas azuis entornou água na cabeça da criança de olhos remelados que brincava de amontoar terra do amontoado de barro, escavado do buraco esculpido na crosta da pedra por onde corre o rio de água salgada, oriunda do amontoado de barro exposto na mão do autor da vida que tomava um chá de calmante enquanto atirava pedra na copa do cipreste de frutos azedos, doces e amargos. 

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Zé das Couves

( Ney Valença )


Sábado à noite, baile na Estudantina, o Point da cidade.
Forró de primeira, da hora. Terno impecável, pisante brilhando,
salário no bolso, perfume Lancaster. Becado, abonado e cheiroso.
Nos trinks. Vai ao encontro da amada.

Ela linda, fogosa e atraente. Beijam-se, atravessam a rua e adentram
o salão. Apaixonados dançam agarradinhos, ela, com um corpo
escultural, provocante, atrai olhares, desperta desejo nos homens.
Ao ir no bar buscar uns drinks, na volta, vê um homem falando ao
ouvido da namorada. Também vê quando ela dá uma bofetada no
sujeito atrevido. Vendo aquela cena o sangue lhe sobe à cabeça,
corre até o indivíduo e dá-lhe um empurrão.

Aí o tempo fechou e a porrada estancou feio. Era rabo de arraia,
pontapés. É neguinho correndo. É branquinha chorando. Um
pandemônio, um escarcéu, diabo a quatro, um fuzuê danado.
Cada um por si e Deus nos acuda. Affe, era um toma-lá-dá-cá,
pega pra capá, ziriguidum, pai oxum e bangalô três vezes.

E tome forró. S som não pode parar.

É copo quebrando, gritaria. Arre égua, é o fim do mundo.
E vem a dura. Sobe a ladeira, entra no beco, sai na ruela.
Aí meu rei, é perna pra quem te quer! O bicho pega e o coro come.
É bala traçando, dumdum, dum, dum, dum... E bala perdida.
De repente o silêncio mortal. Um chororô, um chorominga,
um suspiro, um lamento, um grito alucinante, e o adeus.

Foi-se Zé das Couves.

Homem bom, decente, trabalhador, influente, menino de feira,
moleque do morro. Mais um que só queria viver
e pedir socorro pra toda sua gente. 

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Provocando o debate  

( Paulo Estanislau )


Nesse tempo de CONVID 19, dias em que estamos condenados à prisão domiciliar, e bom que seja assim, para nossa proteção, dos amigos e da sociedade em geral, quando não se tem muito o que fazer, ou é arrumar o velho armário, àquelas gavetas bagunçadas, o guarda roupas de cabides vazios e roupas amontoadas onde deveriam estar os sapatos,  ou então, apenas passar o dia deitado vendo televisão. Se a família tiver mais de três pessoas melhor, cairia bem um dominó, um pif paf, ou até mesmo uma partida de buraco, como no momento não é o meu caso, apesar da companheira, dos três filhos, dois netos, duas noras e um genro em casa somos apenas três pessoas, me restou arrumar as gavetas.

Foi em uma dessas arrumações que encontrei um livro de textos escritos no ano de 1963 pelo médico Câmara Moreira, cirurgião que operou minha mãe e tornou-se amigo da família. Me chamou atenção um texto intitulado Promessa que estava com aquela fita de papel separadora de páginas e tinha algumas linhas sublinhadas a lápis, possivelmente por minha mãe.

Dona Elífias, evangélica, certamente sublinhou aquelas linhas para debater o tema com o seu amigo escritor e seguidor da linha filosófica espírita.

Mesmo sendo um ateu convicto, li o texto e achei oportuno provocar o debate, mesmo sem a permissão do saudoso escritor. Então, segue aí!

“PROMESSA
( Câmara Moreira )

Não é de hoje que a humanidade busca encobrir ações incorretas, com rótulos verbalísticos de embuste.

Neste particular, quem mais tem sofrido é o movimento religioso-cristão.
Enquadra-se bem, aqui, para estudo, as chamadas “promessas”, que certas seitas religiosas adotam no seio dos seus adeptos.

Rápido exemplo nos dá conta de semelhante ardil:

O vocábulo promessa significa obrigar-se verbalmente, ou por escrito, a dar alguma coisa sem nada receber.

O vocábulo troca quer dizer obrigar-se a dar uma coisa por outra.

Diante das definições acima, como se designar de “promessa” à proposta que se faz ao Poder Divino de nos dar isso, que lhe daremos aquilo?

Não é promessa, absolutamente. Trata-se de troca; e de troca desrespeitosa, dolosa, ou ainda traficância.

É troca porque se sugere à Divindade nos dar uma coisa que lhe daremos outra.
É desrespeitosa porque se propõe à Divindade algo que não seríamos capazes de propor a nenhum comerciante humano, tal a sua insignificância.

É dolosa porque sempre pedimos alguma coisa importante e em troca oferecemos bagatelas.

É traficância porque usualmente se oferece valores materiais à-toa, ninharias inservíveis, a quem quer que seja (fitas, ceras, etc.).

Afinal de contas, as seitas que assim agem estão descuidando em evitar movimento mercantilista no seio da igreja, amplamente condenado pelos ensinos contidos nos evangelhos. Além disso, estimula o incentivo ao interesse inferior, salientando a ausência de desprendimento pessoal.

Essas as razões de reafirmarmos:

Não é de hoje que a humanidade busca encobrir ações incorretas com rótulos verbalísticos de embuste”.

Taí o texto escrito no início da década de 1960.



Tá aberto o debate!

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Final feliz

( Ney Valença )


No Reino de Wol-Sland, nas terras de Saint Vicent Saucer, existia um majestoso castelo, grandioso, cravado de pérolas. Ali vivia uma princesa, enclausurada na redoma de seus aposentos. Ninguém por todo o reino havia visto o seu rosto. Somente um serviçal conhecia sua face.

Em toda terra e em toda imaginação fértil pintavam-se retratos da moça. De olhos verdes, pele alva aveludada, cabelos longos cor de ouro, assim, imaginavam aquela princesa.

Seu pai, o Rei, havia feito um decreto: “Todo aquele que ver o rosto de sua amada filha, ousar chegar perto, ou, quiçá, vislumbrar a sua silhueta, teria como destino a guilhotina”.

Vivia a Princesa solitária, seus amigos eram seus livros. Fantasiava encontros, romances, escrevia poemas e cartas de amor. Os dias passavam, tal as noites, sem paixão, levando-a a sonhar com um encantado Príncipe.

Eis que, numa noite de tempestade, o destino obriga um viajante a fazer parada nas redondezas daquele castelo. Na taberna, ouve o viajante, falarem da Princesa, de sua beleza, da castidade, da tristeza e do decreto, parte essa, a do decreto, que causou mais interesse ao interesseiro cavaleiro andante. Poeta e trovador, buscava amores, prazeres e desafios.

Mesmo pensando na ponta do aço de fio cortante, decidiu o aventureiro que sua epopeia naquela terra distante, no reino de Wol-Sland, seria salvar a Princesa.

Num rompante, levanta, sorve a caneca de vinho e sai na tempestade. Galopa em direção ao castelo em meio a trovões, relâmpagos e raios que iluminavam a fortaleza. Ao pé da muralha de pedras salta da sela e se põe a escalar o magistério, impetuoso, rápido e certeiro alcança a janela daquele presídio.

O Cavaleiro galante invade cauteloso e em silêncio a sala do trono, o Covil do inimigo. O perfume suave conduz o mancebo ao quarto da donzela. Espreita a porta, o coração dispara, nada fala. Entra, diante do leito, deslumbrado, ele admira a bela adormecida. Em toda sua vil existência jamais tinha visto criatura tão linda.

Como em um conto de fadas ela desperta. Seus olhos verde se alegram, brilham ao ver o formoso assaltante e, tal qual nos livros e nos seus sonhos, ela levanta e se atira nos braços daquele que em sua mente era seu herói, seu salvador, o seu Príncipe.

E assim, em outro cenário do conto de fadas, um campo florido de bromélias, passeiam felizes os amante, num reino distante, em outras terras, como simples camponeses vivendo um grande amor.


A Princesa e o Cavaleiro errante foram felizes para sempre. 

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Quando a arte encontra a arte

(Marcus Ottoni)

Polos opostos se atraem e polos iguais se repelem. Tudo bem. Assim funciona na física. Na vida acredito que em alguns casos se aplica este conceito, embora, na maioria das vezes, o contrario é que se torna regra, ou seja, polos iguais se atraem, se comunicam positivamente e ampliam o campo magnético da existência. Assim o é, e assim sempre o será, por séculos e séculos, amém.


Não há nada mais prazeroso do que o inesperado, a surpresa, o encontro desprogramado que gera alegria e novos conheceres. É, pode-se dizer, inimaginável o sentimento que brota quando a arte encontra artistas novos, ou quando artistas novos se encontram com a arte e, desse e nesse encontro, se descobre um mundo novo, como num espetáculo teatral no exato momento em que o pano sobe e o show começa. Fantástico não é o show da vida, mas a vida dando um show de vida em sua plenitude.


Um encontro pré-agendado, a procura de um lugar para conversar, uma cerveja gelada e pimba, tudo acontece sem que nada estivesse no roteiro da conversa ou fizesse parte do assunto em pauta. Então acontece o misterioso momento mágico do encontro, da descoberta, do encantamento da arte de essência, domiciliar, familiar, livre e conscientemente liberta. Feliz e contagiante. Alegre e envolvente. Madura e infantil. Solta, aberta, desprendida de todo narcisismo e própria daqueles que da arte fazem a locomotiva que percorre trilhos alheios apitando felicidade para contagio amplo, geral e irrestrito.


Pai, filho maior, filho menor. Artistas em movimento, em rotação uniforme com a alegria dos personagens que encarnam e encaram a vida com o humor daqueles que sabem que muito mais importante do que estar vivo e participar da vida alheia interagindo como forma de minorar os azedumes do dia a dia de gente que nem mesmo conhecem. Assim, lá vão tocando a vida e tocando as pessoas com seus personagens, jeitos, trejeitos, falações diversas, modos e posses de gente simples que faz da arte a melhor e mais completa coleção de vitórias de uma família que de uma perda irreparável construiu uma história maravilhosamente bela e cheia de emoção e alegria. 


Naldo Dourado, Vinicius e Bruno... Dona Augusta, Raimundinho e Pedrinho... 



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Misto quente e suco de maracujá

( Paulo Estanislau )



Depois de uma desgastante negociação com o motorista do caminhão de cerveja, em que ele pretendia R$ 80,00 e eu só concordava em pagar R$ 60,00, entramos num acordo. Paguei R$ 70,00 por engradado. Não era justo pagar oitenta reais quando um engradado custa sessenta, só porque não fiz encomenda antecipada. Valor ajustado, comprei logo dez grades.  Não sei pra que tantas, mas com a quantidade de dinheiro que eu estava, por que fazer economia? Era tanto dinheiro que tentei colocar no bolso da camisa e não consegui. Peguei as notas de R$50,00 e de R$20,00 e as guardei no bolso da calça. No da camisa deixei apenas as notas menores e alguns dólares que estavam, não sei por que cargas d’água, misturados aos reais. 


Grades colocadas no chão, fui conferi-las. É sempre bom conferir, alguns chapas mais espertos colocam duas ou três garrafas vazias, devidamente tampadas, entre as cheias. No final do dia, salvam uma grade.

Nesse momento no relógio soa o alarme, eram seis horas da manhã. Tinha que levantar e preparar o café da Paulinha. Lá se foram as cervejas e toda aquela dinheirama. O que fazer senão levantar e aprontar o desjejum da minha filha, misto quente e suco de maracujá, já previamente acertado. Enquanto ela se aprontava fui preparar seu lanche. Abri a geladeira e notei que a única fatia de presunto, naquela bandejinha branca, não tinha uma aparência muito boa, resolvi não utilizá-la. Última forma, vamos fazer queijo quente e suco de maracujá. Mais uma surpresa, o suco havia, praticamente, acabado. A quantidade que tinha na garrafa só daria para deixar o sabor de água de cacimba. Por sorte o suco de caju estava mais cheio. Não era o seu preferido, mas daria um suco com mais sabor e consistência. E todo o combinado da noite anterior, misto quente e suco de maracujá, sofreria alteração. 

Sem questionar a mudança do cardápio pré-acordado, deliciou-se com o que estava feito e foi para a escola. Filha maravilhosa essa Paulinha. Confesso que senti uma angústia no peito, uma leve dor no coração e não era nenhuma cardiopatia, era sentimento de que poderia ter feito melhor. Até pensei em ir à padaria e comprar uma bandeja de presunto e uma garrafa de suco de maracujá, mas o dinheiro só dava pra gasolina. Pra que me torturar se ela não havia falado nada.

Pensar que minutos atrás eu estava com os bolsos cheios de dinheiro. Não fosse o despertador eu já estaria bebendo alguma bem geladinha e comendo um camarão ao alho e óleo. A geladeira, certamente, estaria cheia de presunto, queijo e salaminho. 


Tem nada não, quando o dinheiro sair, se sobrar algum, jogo na mega-sena. Se ganhar não vai mais faltar presunto, queijo, nem suco de maracujá e tem mais, compro aquelas dez grades de cervejas de meia hora atrás, uma boa quantidade de camarão, daqueles grandes, e chamo meus amigos, principalmente os que estão me lendo agora para saboreá-los comigo.


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Mulher: feminina ou feminista?

(Marcus Ottoni)

O conceito de que o sexo frágil é a mulher, está redonda, completa e universalmente equivocado. Na raça humana o sexo frágil é o homem. A mulher é o que de mais forte existe no mundo e vem provando isso em toda a história da humanidade, desde os mais remotos tempos.

Classificar a mulher como a parte frágil da raça é o que se pode denominar de absurdo histórico e conceituação machista de uma sociedade cujo poder emana do homem, pelo homem é exercido e para o homem é direcionado. A mulher passa a ser coadjuvante nesse cenário e, o pior, é que encarna esse personagem estereotipado, assumindo assim uma condição subalterna e submissa.

Mas dirão as feministas de carteirinha e os “machos” defensores de ocasião das mulheres, inseridos no falacioso discurso do “politicamente correto”, que essa realidade está sendo alterada pela luta por direitos iguais e ocupação de lugares de destaque pelas mulheres na cadeia social, profissional e pessoal. É verdade. Mas a luta desse pessoal alinhado a corrente feminista universal não é pela valorização da mulher como ser humano e como mulher em sua essência feminina. É o pano de fundo para mascarar interesses diversos, alguns pouco confessáveis do ponto de vista moral e ético.

A mulher não tem porque querer se igualar ao homem e muito menos buscar direitos iguais ao sexo masculino. Essa retórica é falaciosa e altamente depreciativa, já que, ao tentar ser como o homem a mulher perde sua principal característica e passa a ser o espelho mal construído daquilo que combate e que a desconsidera como ser humano independente com capacidade para qualquer atividade que lhe seja determinada, tanto no campo profissional, como no campo afetivo, pessoal e familiar. E passa a exercer a mesma opressão que denuncia e sofre, criando uma casta seleta que se serve das mulheres menos cultas ou mais esclarecidas.

A mulher sempre serviu ao sexo masculino das mais diversas formas e sempre com submissão obrigatória imposta por uma sociedade onde a força masculina se sobrepõe a racionalidade. Assim, ao longo dos séculos, a mulher foi se inferiorizando-se, mais pela sobrevivência e nunca por vontade própria. Dezenas de fatores contribuíram para que a mulher, dita sexo frágil, se tornasse um objeto de uso e fruto dos homens, sem vontades pessoais, sem identidade, sem outra expectativa de vida que não fosse a de servir aos homens satisfazendo todas as vontades de quem a tinha como esposa, mulher ou escrava. Essa realidade é mais cruel nos regimes totalitários com destaque para o universo islâmico.

Ao longo dos tempos as mulheres foram tomando consciência de sua importância na sociedade e da necessidade de romper com o estado de submissão e conquistar a liberdade e direitos que lhe são garantidos, não por meio de leis que mascaram a submissão e a opressão em artigos limitados de direitos femininos, mas pela própria natureza da mulher que é fundamental para a continuidade da raça humana.  Mais ainda, pela determinação de mudar o seu papel na sociedade e estabelecer novas posturas sem perder sua principal característica: a feminilidade.

Sem desmerecer a luta das feministas de plantão e sem querer criar embate discursivo sobre suas teses e posicionamentos, acredito que, embora algumas conquistas tenham sido consequência das lutas de movimentos feministas, há ainda muito chão para percorrer na estrada da valorização da mulher como ser humano e não como espelho desfocado do masculino, não apenas no mercado de trabalho, mas em todas as atividades humanas. A mulher não deve querer se igualar ao sexo oposto para, ilusoriamente, conquistar o respeito e consideração de uma sociedade culturalmente covarde neste quesito e altamente manipulada pelos interesses inconfessáveis de grupos feministas “machificados” e, idiotamente, predadores da honra, moral e do próprio corpo feminino.

Queimar sutiãs em praça pública e agredir o próprio corpo transformando-o em objeto de agressão moral, talvez não seja o protesto válido para atrair a atenção para a verdadeira causa feminina. Sutiãs queimados e corpo aviltado tem mais a haver com a grotesca masculinização da mulher e em nada sinaliza para a valorização de quem sabe ser o que é e luta para ocupar seu espaço na sociedade com a mesma dignidade que se impõe como mulher na vida de qualquer homem, de qualquer instituição, em qualquer país, em qualquer profissão.


O respeito, a valorização, a igualdade, a independência da mulher não está em ser igual ao homem e não pode seguir o mesmo caminho que a marginalizou ao longo dos séculos. Deve ser conquistado pela autonomia de seus conceitos e de suas verdades, pelo conjunto de mulheres que tenham como foco a liberdade do ser, a consciência do querer e a força do poder. Sem ser masculina na isonomia social.

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De companheiro a indivíduo

( Pablo Awtamovar )

Uma noite dessas já me preparava pra dormir quando o telefone tocou, era um ex companheiro de movimento sindical me perguntando se eu havia assistido ao noticiário noturno Respondi que não, ele então resolveu contar-me o que assistira. Falou que um determinado senador petista fez um discurso em que ele asseverava que o Sr. Waldomiro Diniz não fazia parte das fileiras do partido. E ainda brincou, falou com sua costumeira eloquência, porém um pouco nervoso, agitado que nem um siri na lata. Discursou da tribuna do Senado, para um plenário quase vazio, dizendo:


— Este indivíduo não é e nem nunca foi do PT!

E completou sorrindo: 

— No partido não temos companheiro desta laia!


Certamente, aquela era uma frase de efeito, para abrandar os exaltados ânimos da população por conta da promíscua relação do Waldomiro com alguns congressistas.  Muito embora estivesse cassado e com sono resolvi lhe perguntar se sabia o significado das palavras que companheiro e indivíduo. E Completei:


— Companheiro – Amigo; colega; comensal; amigo íntimo.


— Indivíduo – Exemplar de uma espécie qualquer; sujeito; obediente; sem vontade própria; adstrito.


Tentei explicar a minha intenção com a pergunta dizendo que a mim, parecia que o senador usou a palavra indivíduo de forma discriminatória. Nosso amigo, na ansiedade de falar interrompeu-me dizendo:

— Lembro-me bem de quando fomos apresentado ao senhor Waldomiro no gabinete da presidente do Sindicato dos Bancários de Brasília, hoje uma parlamentar pelo PT, Estávamos eu, a presidente, ele e um outro colega, também diretor do sindicato. Éramos eu e outro um colega, diretores coordenadores do Departamento de Bancos Privados. A presidente apresentou-nos o Waldomiro como sendo um companheiro, militante petista com grande influência no partido. Em seguida pediu- nos para ajudá-lo, pois o PT iria começar um trabalho de investigação das contas fantasmas, utilizadas pelos assessores do governo Collor, inclusive as do Presidente e seus familiares. 

Apesar do sono e cansaço demonstrados na minha voz e não perceptível para ele, continuou desafogando sua indignação.


— Após sermos apresentados e ter sido informado pela presidente que tínhamos acesso aos bancos privados que careciam de investigação, o  influente militante petista chamou-nos, a mim e ao outro colega, para um bate papo em uma outra sala, mais reservada. Lá passou os nomes dos bancos e das pessoas em que ele tinha interesse e que tipo de trabalho deveria ser realizado. Recordo-me bem, que dentre os bancos privados estavam Itaú, Safra e Rural. Fizemos, também, alguns trabalhos em bancos estaduais. Eu fiquei encarregado do Itaú e dos estaduais e o colega do Rural e Safra. Durante todo o período de investigação, até o dia do Impeachment, tivemos inúmeras reuniões. Passávamos as informações semanalmente, ou sempre que descobríamos algo relevante.  Em todas elas, o Sr. Waldomiro Diniz colocava-se como na forma apresentada pela presidente do sindicato. “Um influente militante petista”. 


Não sei porque perguntei se queria dormir, mas perguntei: 


— Será que tinha mesmo influência ?


Respondeu sem pestanejar.


— Devia ter mesmo, sabe por que ?

Não, eu não sabia e nem queria, queria era dormir. Mas como não tive coragem de dizer, ele continuou.


— Na madrugada em que foi passada para ele a localização do senhor José Roberto Nehring, dono da Brasil’s Garden, que havia construído o suntuoso Jardim da Casa da Dinda, ele me disse: “ — Vou passar agora mesmo para a Polícia Federal”. Durante o dia, vimos no jornal a apresentação  do Empresário pela Polícia. Lembro-me que, por diversas vezes, ele relatava as reuniões tidas com os senhores José Dirceu, Eduardo Suplicy, Aloísio Mercadante e citava que o Lula tinha conhecimento de tudo. 

Com a eleição do Professor Cristóvam Buarque para Governador do Distrito Federal, o Sr. Waldomiro foi designado, pelo PT, pelos bons serviços prestados, para a função de Assessor Parlamentar do Governador. Ato que deixou o recém eleito, nem tão petista assim, contrariado. Conforme sopraram os ventos. Você acha que isso não é influência?

Não respondi, também nem precisava, ele queria mesmo era falar. E falou:

— Então, dizer que o Waldomiro Diniz não é e nem nunca foi do PT, só pode ser piada. Piada de senador, não tem graça nenhuma. Você não acha ? 

Concordei para ver se aquele telefonema teria fim. Ele, notando que minhas respostas estavam virando monossilábicas, entendeu, despediu-se dando boa noite e desligou.

Agora cá pra nós, sendo bem franco, tem senador que sabe ser engraçado, e tem senador, como esse, que não tem graça nenhuma. 


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Um homem da noite

( Paulo Estanislau )


A frase que vou citar agora já escrevi outras vezes e falei muitas mais: “Mico, todos cometem ou pagam, que atire a primeira pedra quem não cometeu o seu”.  Se não cometeu ainda, é melhor esperar, não atire tão rápido, por menor que seja a pedra.  Ele não distingue sexo, faixa etária ou classe social, todo cidadão ou cidadã terá o seu para contar aos filhos e netos. Não tem como fugir. Posso até estar sendo chato com essa insistência, mas é para que você vá se preparando para um dia, sem muito constrangimento, assimilar o seu. 

Mico não dói. Mico constrange. Chateia e aborrece. Mas passa. 

Se questionado sobre qual a melhor definição para o mico, diria o poeta Luis de Camões: “É ferida que dói e não se sente; É contentamento descontente. É dor que destina sem doer”. 
Eu já cometi os meus. Entretanto, quero aqui questionar e protestar por um que me foi creditado por alguns amigos, colegas de Banco Itaú, que  não cometi. Teria sido um (ou mais um), se a história contada por eles fosse verdadeira. Não foi mico por um único detalhe, jamais pronunciei qualquer frase que sugerisse ser eu um homem da noite. Não naquela, ou até aquela noite.
Acontece que nós, que trabalhávamos no período noturno (16:00 às 24:00 h), no CPD do banco, costumávamos às quintas-feiras esticar o nosso horário, nunca ultrapassando as quatro da manhã e com o consentimento das respectivas esposas, é claro.  As sextas-feiras estavam reservadas para a família. Sexta é dia de Lobo Mau e elas não nos deixavam sair sozinhos. É bem verdade que alguns, por questão de segurança (ou insegurança), faziam questão de acompanhar as esposas nesse dia.
  
O destino, nunca era pré-estabelecido, e as possibilidades de escolha eram poucas, pois àquela hora da noite só os bares tradicionais da cidade estavam abertos.  Beirute, Arabesk, Chorão e uns poucos outros, eram as opções.  Nessa noite, como sempre acontecia, escolhemos democraticamente por maioria e apesar dos questionamentos sobre o local, ir ao Beirute. Não que o bar não fosse legal, era e é muito bom, com bons tira-gostos e cerveja gelada. Os questionamentos ficaram por conta da democracia e liberdade existente no local. Lá se podia (o tempo do verbo está, apenas, em consonância com o tempo da história) namorar sem constrangimento, mesmo que o namorado ou a namorada fosse do mesmo sexo, evidentemente, mantendo o devido respeito ao ambiente e demais frequentadores. Nada de mais, só beijo na boca e carinho, o problema é que tínhamos no grupo um colega bastante preconceituoso.
Eleição ganha, decisão cumprida. Fomos ao Beirute. Cerveja gelada, costelinha de porco, quibe recheado. O que mais queríamos? Foi pra isso que nós fomos. Desopilar a cabeça. Falar de futebol, criticar o governo, comentar a respeito dos casais apaixonados do Beirute, sem preconceito é claro. Só não se podia falar do serviço. 

Como em bares as regras são poucas e mutáveis, acontecia de alterarmos, mesmo que só um pouquinho, as nossas próprias regras. Olhar, não tira pedaço de ninguém. Certamente essa frase foi criada por alguma mulher. Alegremos então os nossos olhos. 
Numa dessas pesquisas olhacionais, nos deparamos com dois olhos castanhos claros, em um rosto bonito, de uma bela morena, espreitando nossa mesa. Com ela mais duas beldades de igual beleza. O fato delas terem olhado já elevara o nosso ego. Pensamos então, em convidá-las para nossa mesa. Alguém comentou:
— Elas são três, nós somos cinco.   
A resposta foi imediata e aniquiladora de quaisquer pretensões: 
— E daí, nos vamos só beber e conversar. Daqui a pouco temos que ir pra casa.
Tomamos então a decisão, vamos convidá-las para a mesa. Agora só restava saber quem iria fazer o convite. Nenhum parecia ter coragem suficiente para tal façanha. Até que decidiram: 
— Piupiu, vai lá que a morena está olhando é pra você.  
A morena era aquela de olhos castanhos claros, cabelos encaracolados, rosto bonito, pele suave. Diante de tantos argumentos, criei coragem.  Fui, não sem antes sorver um copo de cerveja, inteirinho. Pernambucano que se presa, não vacila, nem fraqueja. Lá fui eu, cheio de empolgação. Afinal de contas, com um sim teríamos a conta divida entre os cinco, com um não, o fora seria, da mesma forma, socializado. Eu estava sendo apenas o emissário do convite.
Aproximei-me da mesa em que estavam, educadamente dei boa noite, embora já fosse quase dia, e perguntei se desejavam fazer-nos companhia. Antes que respondessem, a morena sugeriu que me conhecia. Eu, gentilmente respondi que era possível, pois eu saía muito, e completei dizendo que trabalhava no Itaú do setor comercial sul, numa tentativa de ajudá-la a lembrar de onde me conhecia. O que de momento, não surtiu efeito. Delicadamente, uma das amigas nos interrompeu agradecendo ao convite, não poderiam ir pois aguardavam alguns amigos.
Voltei para a mesa e fiz o relato, tal qual acontecido. Um espirituoso colega  transformou a parte da frase em que dizia que saía muito em: “EU SOU DA NOITE”. Continuamos a beber, beliscar e eu, a ouvir gozação.
Os amigos delas chegaram, uma turma assim como a nossas, bastante animada. Quando todos iam embora, de passagem por nossa mesa, a morena aproximou-se e disse recordar de onde me conhecia. E perguntou: 
— Você não é o esposo da Sheila?
Diante da a minha resposta afirmativa, completou:
— Eu trabalho com ela. 

Elas se foram, nós ficamos. A gozação continuou, porém em uma intensidade muito maior. Por muito anos fui responsabilizado pela não aceitação ao convite. Até hoje, para aqueles amigos, eu sou “Um homem da noite”.


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O banho de Ritinha

(Marcus Ottoni)

O dia começava a raiar e o sol ia rasgando a madrugada timidamente, embora naquela parte do sertão nordestino o calor parecia estar saindo das caldeiras do inferno num dia em que o Diabo cozinhava almas perdidas em fogo alto preparando um novo convescote de pecados redimensionados e reciclados para novas almas que continuavam sassaricando em vida. Pense numa quentura infernal.

Pela janela Ritinha espiava os raios de sol galopando pelo horizonte anunciando que a grande bola amarelo ouro estava galgando o céu para, soberanamente, se impor pelo dia afora. Ainda enrolada no fino lençol de chita puído que pouco ou quase nada cobria seu corpo magro de adolescente criada na terra batida e quebrada do sertão, com pouca água, ou melhor quase nada de água potável, ela olhava aquele amanhecer como olhara todos os outros até aquele momento: com a esperança de viver outra vida.

A rede na qual ela se balançava criava movimentos para a luminosidade solar que ia crescendo segundo a segundo e tornando o pequeno quarto com paredes de barro batido socado entre as ripas entrelaçadas das varas cortadas na mata seca das algarobas um ambiente mais claro definindo os poucos e rústicos móveis que compunham aquele lugar. Ritinha apenas olhava o sol crescendo no horizonte e invadindo seu espaço. Não pensava em nada.

Por muitos minutos se deixou ver o sol nascer. Sentiu o calor de um raio travesso atravessando a tosca janela de palha de coqueiro trançada e se jogando sobre seu corpo aquecendo um pouco a pele morena que o recebeu entusiasmada. Ela ainda brincou com aquele feixe de luz correndo o dedo por ele e fazendo-o subir e crescer para depois diminuir e sumir. Sorriu. Pensou besteira e sorriu mais ainda. Era sua adolescência e sua ousada coragem de imaginar outros mundos e outra vidas.

Quando o sol já ia alto, carregando o calor infernal junto, Ritinha decidiu apear-se da rede e começar o dia como todos os outros. Sacudiu a cabeça para ajeitar a longa cabeleira negra, desamassou o vestido com as mãos, calçou a alpercata de couro e deixou o quarto indo para a cozinha de onde ganhou o quintal. Viu sua mãe na beira do fogão de lenha na alquimia do café nordestino e seu pai, sentado pouco mais distante, próximo a cerca do curral dos bodes fumando um cigarro de palha feito com alfafa picada já que o fumo era escasso naquela casa, não porque faltava nas vendas da vila, mas pela falta do dinheiro para comprá-lo.

“Bença mãeiinha! Bença paiinho!”, cumprimentou-os enquanto se dirigia para a cacimba para lavar-se antes de tomar o café. Caminhou uns cinco minutos e chegou onde um grande buraco cercado por palhas de coqueiros trançadas presas em varas de algaroba fazia de conta que aquilo era um banheiro para as duchas pessoais das pessoas que moravam naquele lugar.  Não era uma água clara, límpida, dessas de nascentes de rios em serras ou em grotas cobertas por vegetação verde. Era um buraco cavado no chão de terra quebrada que, por um milagre da natureza vertia água de um tal “rio debaixo da terra” que supria a necessidade de todos na higiene pessoal.

Ritinha desceu os dois degraus de terra e se colocou sobre a pedra polida que servia de chão ao lado do buraco. Uma lata de cinco litros estava sempre por lá para servir de balde na coleta da água para o banho. Ritinha tirou o vestido e se deixou ficar como viera ao mundo. Os 18 anos mais torneados do sertão e esculpido com muito cuscuz, queijo de coalho, buchada de bode e feijão verde, além de frutas da região como caju e umbu-cajá. A cabeleira negra escorreu costa afora enquanto a água derramada da lata descia vagarosamente pelo corpo como a deliciar-se com cada milímetro de pele que tocava.

Ritinha não tinha pressa. Não tinha fome. Acordara com outros desejos, com outras necessidades, outras vontades naquela manhã. Olhou o sol bem alto, quente, voyeur de seu banho e de sua nudez. Sorriu. Sentiu o calor subindo-lhe o corpo e sorriu novamente. Abriu a boca, mordeu os lábios, os lambeu como se fruta fossem, fechou os olhos e deixou sua mão cair corpo abaixo com a liberdade que seus desejos queriam. Apenas o sol assistiu ao espetáculo de Ritinha naquela manhã de verão no sertão nordestino.


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Cesto sentido

( Paulo Estanislau )


O Meu português pode não ser dos melhores, mas também não é tão ruim assim. Por mais estranho que pareça o título, no que diz respeito ao sexto sentido do meu irmão Fernando, tem que ser escrito com “c” de cesto e de cesto de lixo.  

O seu sexto sentido é mais furado do que táuba de tiro ao Álvaro, diria o nosso grande e saudoso Adoniran Barbosa. Depois de lerem essa história, vocês hão de me dar razão.

Em um desses meses que um profissional liberal não fatura nem pra média (esqueci que não estava escrevendo só pra carioca ler), nem pro café com leite, ele  ligou me convidando pra almoçar. Coincidentemente, no dia do meu pagamento. Espero que todos vocês acreditem em coincidência. Era dia de folga, não custava nada ir almoçar com meu irmão, tomar uma cervejinha gelada e jogar conversa fora. Aceitei o “convite”.


Sexta-feira, 12:30h, fim de expediente para a maioria dos advogados e servidores públicos no Distrito Federal, encontramo-nos. Por sugestão sua fomos comer uma carne de sol no Xique-Xique. Entre um copo e outro íamos conversando, ele falando e, como é de praxe aos profissionais da lide jurídica, floreando a conversa. Até que pedi para que fosse mais direto, pois não estava entendendo o que ele queria. Foi aí que surgiu o motivo do “convite”. Estava precisando de uma grana para ajudar uma amiga.

Muito louvável o senso de solidariedade do meu irmão. Mas com o meu dinheiro. Questionei se ele sabia em que ela utilizaria aqueles recursos, e ele explicou que era pra comprar remédios para o seu filho recém nascido. Indaguei se ela não tinha outro amigo para pedir. Nesse momento ele, floreador de conversa, acuado, foi direto: 

--- É que o filho é meu. 


Com quase cinquenta anos de convivência, tomei a liberdade de lhe perguntar se tinha certeza. No que ele respondeu sem arrudeios; 


--- Claro, eu confio nela.

A partir daí, obviamente eu jamais me negaria ajudar um sobrinho, resolvi emprestar-lhe o dinheiro. Paguei a conta do almoço para o qual eu havia sido convidado e fomos ao banco. No caminho me dispus a ir com ele até a casa do seu filho. Ele, relutante, disse não ser necessário. Eu, insistente, queria conhecer o menino, afinal era meu sobrinho.  Passamos no banco, retiramos o dinheiro e fomos. Eu empolgado e feliz por conhecer mais um sobrinho, o terceiro ou quarto por parte desse meu irmão.

Chegamos. Uma morena muito bonita veio nos receber. Beijinhos, abraços, devidas apresentações, fomos convidados a entrar. Eu ansioso quis logo ver meu sobrinho. Os dois, enamorados, sumiram casa adentro deixando-me na sala. Alguns minutos depois, para mim demorados, certamente estavam arrumando o menino (prestem bem atenção que escrevi o e não um) retornaram com aquele rebento, forte, saudável, bonito e moreno como a mãe. Meu irmão o conduzia nos braços, feliz como pinto no lixo, entregou-me e, feliz, segurei meu sobrinho e o beijei, era realmente lindo, parecia com a mãe.

Nesse momento, acreditem, sem qualquer maldade, algo me pareceu estranho. Ele não trazia qualquer característica da nossa família. Não que fosse necessário, mas me pareceu estranho. Não era o meu sexto sentido, sou cético em relação a sua existência. Para eliminar qualquer dúvida, olhei novamente para o menino, olhei para o pai (naquele momento meu irmão), para a mãe e concluí que não havia o que questionar, ele era filho daquela morena, eles se pareciam, eram igualmente lindos. Quanto ao meu irmão, nada que um exame de DNA não resolvesse.

Terminada a visita, tarefa cumprida, fomos embora. No caminho, mesmo um pouco constrangido, falei do meu sentimento. Aquela dúvida que me acometeu em relação à sua paternidade. Ele, naturalmente, irritou-se com o meu questionamento. Não discutimos, mas conversamos em um tom mais elevado.  Ele, contrariado com o meu posicionamento, dizia que se não fosse eu cético em relação a tudo, acreditaria no sentimento de pai. O seu sexto sentido não o trairia, ele era o pai daquele menino. Além do que, ele tinha total confiança na namorada. Para não deixá-lo mais nervoso resolvi encerrar o assunto. No restante do caminho conversamos sobre outras coisas até que o deixei no escritório para pegar seu carro.  

Dias mais tarde, aproximava-se a hora do almoço e recebo um telefonema desse mesmo irmão com um novo convite para almoçar. Como não era dia de pagamento sugeri que ele custeasse, no que concordou. La fui eu, curioso, ao encontro. Desta feita, no Ki-Muqueka, um excelente restaurante de comida baiana na 203 sul. Algo me pareceu estranho, mais que uma retribuição ao almoço no Xique-Xique, me parecia uma forma de penitência oferecer um   peixe ao molho de camarão, cerveja gelada e cachaça. Não questionei, fui ao seu encontro. Na verdade, fui ao encontro do almoço.  Como era natural de sua parte, tome conversa floreada, até que, após a enrolação de praxe, ele disparou:  


–  O   pai do menino apareceu – .  


Eu, como quem não estava entendendo, perguntei, que menino?

– Aquele que você conheceu – .

Ele, sem constrangimento pois não é do seu feitio, contou que um certo jovem,  impecavelmente vestido, como se fosse ao seu casamento, entrou em seu escritório procurando doutor Fernando. Ambos, devidamente identificados e apresentados, começaram a conversar. O jovem, policial Federal, esse sim constrangido, pediu desculpas por sua namorada ter dito que o filho era do meu irmão e por, há alguns meses, estar recebendo ajuda financeira para a criação. Comprometeu-se em devolver tudo que fora repassado para a mãe, bastaria dizer o valor. 

Obviamente, meu irmão não aceitou a oferta. Deram-se as mãos, despediram-se e, o pai foi ao encontro do seu rebento. O ex pai, foi beber e degustar um excelente almoço.


Não sei quem comemorou o que. Uma coisa eu sei, continuo cada vez mais cético em relação a sexto sentido de pai.


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Surpresas...

(Marcus Ottoni)

A vida sempre nos reserva surpresas por mais que acreditemos que nada mais irá nos surpreender no que nos resta de existência nesse mundo de meu Deus, ou será de tantos Deuses ou de Deus nenhum? Bom, não interessa. O que importa é como a vida nos surpreende quando pensamos que não faria novamente. Isso sim, interessa. 

Surpresas são aqueles momentos inesperados quando alguma coisa que não estava no roteiro acontece e nos deixa boquiaberto. É o inesperado se tornando real ou, quem sabe, o espanto se fazendo valer de acordo com o novo acontecimento. Isto é surpresa, aquilo que nos surpreende ao longo de nossa vida, aja vista que estamos, enquanto crianças, adolescentes ou adultos, sempre buscando novidades e emoções diferentes em aventuras que se sucedem em todas as etapas do cotidiano.

Porém, quanto mais avançamos na idade, menos surpresos ficamos com os acontecimentos que se tornam realidade dia após dia. Talvez por identificar que além daquele fato nada de novo será novidade, embora o fato em si se apresente como algo novo e inusitado. Quem sabe seja o sexto sentido desativando-se, ou a memória reciclando-se de maneira preguiçosa e fazendo do que se apresenta como novidade apenas um fragmento do que já está documentado sem o merecimento do espanto.

Pois se assim o é, o melhor é deixar ficar como está para evitar surpresas desnecessárias e indesejáveis para alguém que já dobrou o cabo da eterna tormenta e navega num barco com 6.5 metros de comprimento por pouco mais de meio metro de largura. Enfrentar a memória num embate entre o ontem, o hoje e o que poderá ser o amanhã é tão improdutivo como reprovável quando se deseja a calmaria dos mares para evitar naufrágios emocionais e afogamentos sentimentais.

Mas a surpresa é um fato que nos leva a pensar que sem ela a vida perde o sentido e todos os sentidos do ser humano se perdem num labirinto de incertezas, fazendo do homem um elemento insignificante no contexto cósmico da única vida que se tem e que se acabará um dia ao final dessa longa aventura cheia de surpresas que é a existência. Sendo assim, nos resta, então, deixar que a surpresa nos surpreenda de forma faceira, e que nos faça refletir sobre os benefícios de ser surpreendido por algo que acreditamos que não mais nos surpreenderia.

A vida em si já se traduz em surpresa, e por ela, trafegamos em caminhos surpreendentes que criamos ou que por eles enveredamos sem ao menos saber que escolhemos esse ou aquele caminho. E neles, as surpresas acontecem inesperadamente fazendo com que o inusitado do momento nos espante e cause admiração. A surpresa não é o fato em si, mas a emoção que é gerada por aquilo que não é anunciado previamente. 


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O filósofo

( Paulo Estanislau )


De filósofo e louco todo mundo tem um pouco. Pode não ser essa a forma mais usual do antigo dito popular, mais foi essa a impressão que nos deixou certo cidadão que, no setor comercial, em frente a escada do metrô, discursava para transeuntes que corriam para o trabalho. A sua eloquência, mais que o assunto, aguçava a curiosidade de alguns menos apressados, inclusive eu, que paravam para lhe dar ouvidos.
Para alguns, aquele era mais um louco, era o que indicava sua aparência. Cabelos longos e desalinhados, calça amarrotada e rasgada na altura do joelho, paletó que havia ganho, certamente, de alguém bem mais alto e mais forte que ele e velhas sandálias havaianas. Para a delicada e humilde setuagenária, que estava bem ao meu lado, ele era um filósofo. Se os ilustres amigos estão achando que esqueci da camisa, não, não esqueci. Quem esqueceu de vestir foi o cidadão que discursava para a massa. Para ele, certamente, quinze pessoas já era multidão.  
Discursando sobre Alexander Graham Bell, dizia: 

--- Fosse Graham Bell uma pessoa má intencionada, inventaria o telefone para fazer acordos e promessas sem ter que olhar nos olhos daqueles com os quais faz acordo, ou para quem faz promessa, e depois traí-los.

--- Fosse o Graham Bell um corrupto, inventaria o telefone para negociar de forma mais ágil, maracutaias, intermediação de cargos para parentes e pedidos de presentes para esposas, amantes e demais aparentados, sem ter que reunir-se às escondidas com outros iguais.

  --- Fosse Graham Bell um ladrão, inventaria o telefone para comunicar-se com outros comparsas, discutindo planos de desvios de verbas, roubos e assaltos aos cofres públicos sem que precisasse encontrá-los pessoalmente.

Não era. Nada disso ele era. Graham Bell era um agente de informação. Inventou o telefone, a pedido da Polícia Federal, para pegar no pulo, os mal intencionados, os corruptos e os ladrões a exemplo do que está acontecendo agora no governo.
De repente parou e alertou ao seu público:

--- Gente, vamos dispersar. Os homens tão chegando. São os inimigos do Graham Bell. 

E saiu apressado entre os transeuntes. 


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Somos um livro?


(Marcus Ottoni)



Um dia, lá pelos anos de 1970, um amigo das estradas me disse numa noite em que estávamos acampados na beira da BR 040 e já havíamos desistido de pegar carona, que todos nós somos livros cuja estória vamos escrevendo com o passar dos anos e com base nas experiências que vivemos, tanto as boas como as ruins. O papo rolou quase a noite inteira entre doses da boa pinga mineira e cigarros com e sem filtro, manufaturados pela Souza Cruz ou pelas nossas próprias mãos calejadas de carregar mochilas e sacolas.



Dormi pensando em que tipo de livro seria eu. Um romance, um daqueles cheios de ação, um livro de ficção? Quem sabe um livro de terror, ou então uma literatura religiosa carregada de culpas e caminhos para a salvação? Não tive certeza do que meu livro seria. Até porque, segundo meu parceiro de boleia de caminhão nos anos 70, afirmou, categoricamente, que nós mesmo não conseguimos nos ler porque somos os autores do livro e toda classificação que fizéssemos do livro que escrevemos enquanto vivos é e sempre será tendenciosa por natureza humana. 



Hoje, 50 anos depois daquela noite na beira da BR 040, próximo a cidade de Três Marias, em Minas Gerais, recordo aquele papo e me ponho a pensar no que tenho escrito no livro da minha vida. Me dou ao trabalho de rememorar alguns episódios que acho terem sido marcantes na minha existência. Alguns prazerosos e com lembranças que mais parecem fotografias vivas na memória. Outros, nem tanto agradáveis, mas que fazem parte de algum capítulo do meu livro pessoal e que tem seu registro inapagável.



Tento classificar minha estória em vão. Meu companheiro de estrada estava certíssimo e ainda está, embora não saiba onde ele se encontra atualmente. Mas ele esteve e está certo com relação a nós mesmos querermos classificar nossa estória de vida, ou como ele dizia o livro no qual nos tornamos para que as pessoas que passam pela nossa vida possam ler. Interessante é que essas pessoas passam a fazer parte da estória de nosso livro.



Fico, então, caraminholando com meus neurônios em busca do título, ou da classificação, perfeita para meu livro pessoal. Recordações vão formando o que acho serem os capítulos da estória da minha vida e criando um elo entre os acontecimentos e experiências vividas ao longo dos meus 65 anos. Interessante é ver como nossas experiências estão interligadas umas nas outras e fazem que uma seja causa para que outra se torne consequência da anterior, não necessariamente em uma ordem sequencial, tipo uma atrás da outra. 



Quanto mais recordo minhas experiências, mais empolgante se torna o livro da estória de minha vida. Descubro que algumas delas, vividas muito antes de outras foram responsáveis pelo desfecho de experiência vivida alguns anos depois. Vou encontrando elos entre elas e, como num livro onde os capítulos não são todos sequenciais ligando o anterior ao seguinte, descubro que minha estória é um caleidoscópio de lembranças soltas em seus tempos, mas presas entre si nos tempos de seus complementos, ou de suas consequências.



Fico pensando como as pessoas me leem. Com interesse? Talvez. Com reservas? Quem sabe. Com desconfiança? Pode ser. Com prazer, alegria e satisfação? Algumas sim. Na verdade, todas as pessoas que já me leram nessa vida estão, de uma forma ou de outra, inseridas na minha estória e são parte indissociável das minhas experiências, todas, sem exceção. Se assim o são, se transformam em coautores do meu livro, e alguns até em “ghosthwriter” por participarem de minhas experiências mesmo ausentes ou distantes de mim.



Se sou um livro que ainda não identifico, nada melhor para um jornalista com paixão pela escrita, metido a poeta e escritor desconhecido. Devo ser um bom livro, mesmo sem revisão. 





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Cuba libre e os sinos natalinos

( Paulo Estanislau )





Paulinho, meu xará, sempre foi uma pessoa de acentuada timidez.  Maria Clara, por sua vez, muito embora vivesse em Brasília desde criança, trazia consigo a espirituosidade e a alegria peculiares aos nordestinos. Por conhecê-lo bem, serem do mesmo estado, não raras vezes ela o convidava a namorar. Ele, acanhado, rejeitava a todos os pedidos. Comumente, após cada recusa, Maria Clara colocava em dúvida sua masculinidade.



Companheiros do Cruzeiro justificavam que a rejeição era devido a compleição da Clara, baixinha e rechonchuda. Como conheço o Paulinho desde muito tempo, posso lhes garantir que essa justificativa não corresponde a verdade.

Certa feita, lá pro final do ano de 1976 fomos todos à casa de um amigo comum, no Lago Norte, comemorar os festejos natalinos. Éramos onze pessoas divididos em dois carros. Sete em um fusca e quatro em um karmanguia 68.  O meu xará, não acostumado com bebida alcoólica, mas por sugestão de outros amigos, resolveu experimentar a famosa “cuba libre”.  Gostou, pelo seu gosto adocicado, e se empolgou.  Tomou uma,  e depois outra. Daí vão-se duas, três e, não sabemos quantas, mas muitas se foram. Ou, vieram!  
Maria Clara, não tendo percebido o estado do xará, convidou-o a conhecer a os jardins e a piscina da casa, afastados da área em que rolava a festa e  que nessa noite não estavam iluminados. Chegando lá resolveu persuadi-lo ao  namoro. Após alguns minutos de conversa o que se viu, ou, o que ela viu, foi o Paulinho, de membro em riste, a correr quintal a fora, atrás da nossa amiga.
Interrompemos aquela tentativa de assédio e, por um erro de avaliação de nossa parte, o levamos para o interior da casa a procura de um banheiro para, de alguma forma, melhorar o seu estado de embriagues. No caminho ele tratou de deixar tudo, ou quase tudo, do que comera e bebera, bem no corredor próximo a porta do banheiro. 



Fugimos da festa pela primeira porta que encontramos levando aquele cidadão no carro do Ariovaldo, um velho fusca que servia de lotação para os sete amigos que foram àquela festa. No caminho, tratou de jogar no carro o que ainda restava em seu estômago. E não era pouco.

No outro dia, quando o encontramos e questionamos sobre o acontecido, ele garantiu não recordar de nada, ou quase nada. Só o badalo dos sinos em sua cabeça e o gosto de cabo de guarda-chuva em sua boca, o faziam lembrar que havia ido a uma festa. 



Durante todo o dia foi assim.


E não eram sinos de natal aqueles que badalavam, eram de cuba.




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A criação da terra

(Marcus Ottoni)



Essa é uma estória que ouvi quando era menino, lá nas Gerais, a sombra de uma arvorezinha miúda com poucas folhas e galhos tortos e magros. Sempre que olho para o Brasil dos dias de hoje, me vem a mente a estória da criação do mundo pelo Divino. Hoje muito mais do que ontem. É bem verdade que “operei” uma mudançazinha no final da estória, mas nada que comprometa o conteúdo e que destoe da interpretação crítica dos tempos de hoje, ou melhor, do dia em que o malfadado José Sarney (ex uma porrada de partidos: UDN, Arena, PDS, PFL, PMDB, MDB) assumiu a presidência do Brasil depois que uma agulha mal cuidada enfiou-se na veia do Tancredo Neves (também não era lá grande coisa) tirando-o da vida pública depois de eleger-se presidente do país batendo o Salim Maluf no tal do “colégio eleitoral” instituído pelo regime militar brasileiro para perpetuar a cooptação da classe política, uma versão moderna (naquele tempo) do coronelismo oligárquico da politicanalhagem tupiniquim.



Bom, vamos a estória (é sem “agá” mesmo).



“Estava Deus pensativo em sua nuvem predileta, entediado com as mesmices dos dias no céu e um pouco chateado com a contenda com o Diabo que parecia não ter fim, já que o rei do inferno não deixava, um dia sequer Deus em paz. Era todo dia, toda hora, todo minuto enfiando nas redes sociais várias “fake news” tendo com alvo o Divino. Deus não tinha sossego. Fizesse o que fizesse, o Diabo sempre arranjava um jeito, diga-se diabólico, para infernizar a vida do Divino e tentar colocar seus anjos contra ele, tentando tirar proveito de suas mentiras para ampliar seu exército de mequetrefes de mentes vazias. Era, literalmente, um inferno a vida de Deus na contenda com o Diabo. 



Isso o aborrecia, embora tivesse que levar adiante seu projeto de criar o mundo. Pensativo, aborrecido, chateado e invocado todo por causa do tirinete de “fake news” do capeta, Deus então chamou o seu anjo projetista, o fez sentar-se a seus pés com uma grande folha de bananeira descolorada e um carvão de ponta fina e decretou:



- Vamos criar o mundo.



E, ato contínuo, disse para o anjo projetista:



- Risque uma bola com as pontas achatadas. Encha ela de água, alguns lugares mais profundos que outros e bote sal na água para que ninguém dela possa beber. No miolo dessa bola, bote um fogareiro de grande potência para manter acesso o fogo pior do que aquele da casa do Diabo. Agora, coloque neve nessas pontas, uma ao norte e outra ao sul. Encha mesmo de neve para que fique bem frio lá e só sobreviva nesse terreno aqueles que aguentem frio bravo, neve sempre a cair e o sol, quando aparecer, será fraquinho sem conseguir atravessar a barreira fria e aquecer os dois pólos.



E lá ia o anjo projetista desenhando sobre as ordens do Divino. E Deus continuava sua criação.



- Agora faça umas saliências ali naquele ponto. Faça que elas saiam do fundo e se projetem na superfície com umas bocas de fumaça. Bote também uns tremores tipo "Mal de Parkinson" que faça a terra tremer vez por outra. Alí, naquela outra parte da bola, encha de areia fina, dessas que parecem pó de arroz usado pelas discipulas do capeta. Mas bem fina mesmo. Bote também um vento bem forte que faça a areia mudar de lugar e dançar quando o vento bater nela. Arroche um sol de queimar o juízo do cristão e fazer assar a pele de quem passar por esse lugar.



E o anjo projetista ia rabiscando a folha de bananeira descolorada.



- Vamos pra esse lado agora. Bote aqui uma terra fria, quase tanto quanto o que colocou nos pólos. Mas vamos intercalar entre neve e sol, secura e umidade para diferenciar. Coloque também uns terremotos, uns incêndios, inundações e outras intempéries mais. Vamos agora pro outro lado da bolota. 



O anjo, atento e cumprindo todas as recomendações do Divino, virou a bola desenhada e se prontificou a continuar naquele ponto a criação do mundo. Deus, então, retomou a criação vendo que o seu anjo já estava no lugar determinado da bola.



- Aqui vamos dividir assim: uma parte ao norte, um pedaço no centro e uma outra parte no sul. Vamos dividir esse mundão de água com essas terras. Ao norte, bote inverno rigoroso, neve pra dar com o pau, frio, floresta negras super geladas. No centro bote uma tirinha ligando a parte do sul onde arroche uns temporais, tufões, vendavais, terremotos enfim, uma desgraceira própria dos Diabos. Nessa grande área do centro, vamos colocar deserto, incêndios, tempestades, furacões e escolha na nossa lista de desastres ambientais algumas outras coisas para colocar nesse lugar.



O anjo projetista tudo desenhava conforme orientação do Divino. Porém sua mente esperta não compreendia como Deus criava um mundo onde só havia desgraça atrás de desgraça em cada lugar que ele definia como parte do planeta. Queria por que queria questionar o Divino sobre isso, mas em respeito a autoridade divinal, ficava de bico fechado e apenas rabiscava a folha de bananeira descolorada como o Mestre determinava. 



- Agora aqui, nesse lugar na parte sul. Coloque um oceano azul-esverdeado, calmo, sereno, banhando terras belas de areia branca, florestas tropicais com fartura de frutas, terra produtiva onde tudo que se plantar nasce, floresce e dá frutos. Clima sereno com quatro estações: verão, inverno, outono e primavera. Arroche um subsolo recheado de riqueza mineral. Mude esse fogo do meio da bola para uma gosma preta super valorizada. Nesse ponto aqui – disse o Divino enfiando o dedo no mapa do anjo projetista – coloque uma densa floresta com tudo o que o ser humano precisa para descobrir o fim das doenças, a fartura dos alimentos, a beleza da natureza milenar. 



A cada orientação do Divino, o anjo mais ficava perturbado com as ordens do Mestre. Sua língua coçava para fazer a pergunta que não queria calar. Mas calado desenhava, calado ficava.



- Não coloque nenhuma desgraceira nessa parte. Só beleza e riqueza. Nada de furacões, neve, incêndios, terremotos ou outra coisa que se assemelhe a vontade do Diabo.



O anjo projetista não aguentou. E como o céu vive em clima democrático, ele pediu a palavra ao Divino e tascou a pergunta que lhe impedia de dar o goto:



-Mestre me perdoe a intromissão no seu momento de criação da terra. Mas preciso perguntar uma coisa que está mexendo com meu juízo. Posse perguntar? 



- Claro, afinal democracia é para isso mesmo, participação irrestrita. – respondeu o Divino.



E o anjo projetista respirou fundo, piscou três vezes (era um cacoete dele quando ficava nervoso) e tascou a pergunta que não queria calar (ou será que queria ser feita?):



- Mestre, o Senhor colocou desgraça em grande parte da bola. Só nesse pedacinho aqui que o Senhor colocou essas coisas maravilhosas que diferenciam essa parte da bola de todos os outros lugares que foram criados. Por quê?



Deus, olhou para os lados, pigarreou, piscou para o anjo projetista e respondeu:



- Você não imagina a classe política que vou colocar nessa parte da bola.”


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Roedores inteligentes

( Paulo Estanislau )




Eu compartilho da opinião dos defensores da tese de que os ratos são os animais mais parecidos com o homem.  Deixemos esclarecido, para que o ilustre leitor não se aborreça com a comparação, que a semelhança refere-se a sua fisiologia e, também, pelo seu  aspecto imunológico se assemelhar ao do homem, isso conforme estudos do Doutor Clarence Little.  Por isso testes são realizados com esses pequenos animais e não com os primatas, dos quais somos, apenas, uma pequena evolução.

  
Não tratamos aqui da questão intelectual.  Muito embora, verdade seja dita, algumas ratazanas são tão inteligentes que até podem ser comparadas a certos políticos brasileiros.
Para evitar que os homens de toga percam seu precioso tempo tentando avaliar a justeza, ou não, da comparação, mudemos pois, a frase:  



“Certos políticos brasileiros até podem ser comparados às ratazanas mais inteligentes”. 



Não sei se ficou melhor, mas estou tentando evitar minha perda de tempo com idas aos tribunais, prestar esclarecimentos aos homens de preto, principalmente àqueles que gostam e têm o costume de defender os homens de pasta 007. 



Dizem as más línguas que as ratazanas têm o costume de coabitar com outros animais até nos Palácios. 

Deixemos as ratazanas e voltemos aos ratos. Notadamente, assumo a possibilidade da existência de ratos inteligentes. Isso porque os que habitam na minha casa o são. 
Outro dia, levantei-me no meio da noite para beber água, ao acender a luz da cozinha, dou de cara com três desses bichinhos. Eles, que estavam comendo a ração do cachorro, me olham como se eu fosse um intruso naquele lugar. Para minha surpresa dois deles voltam à refeição enquanto um caminha em direção ao invasor, no caso eu, ameaçando atacá-lo, mostrando os dentes e fazendo um barulho ameaçador.

Recuei para trás da parede, o que fez com que o pequeno animal detivesse seu avanço. Fico a vigiá-los pelo canto da parede. Surpreendo-me ao ver que um dos que degustavam a ração do duque, satisfeito, afasta-se ficando postado ao lado do que fazia segurança, este encaminha-se à ração, chegara sua vez de alimentar-se. O outro, por sua vez, fica na segurança, a espreita do invasor.
Eu, com toda minha coragem e valentia, apaguei a luz e voltei para a cama com sede.   
Obs: “Caros amigos leitores, talvez seja conveniente não dar crédito a essa história. Até hoje, desde o acontecido, nem minha esposa acredita. Seja na minha coragem, ou falta dela, seja na inteligência dos pequenos roedores”. 





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O que é mesmo o Natal?

(Marcus Ottoni)



Instituído como festa máxima da cristandade para comemorar o nascimento do filho de Deus, Jesus Cristo, em Belém, na Judeia, há mais de dois mil anos, o dito natal tornou-se o dia em que o mundo inteiro se une em volta de um sentimento pouco, ou quase nada bíblico, reunindo em uma única noite todos os segmentos da sociedade mundial: pretos, brancos, amarelos, héteros, gays, mulheres, homens, crianças, adultos, católicos, evangélicos, umbandistas, ateus, comunistas, capitalistas, anarquistas, afortunados, excluídos, bêbados, prostitutas etc etc etc.



Na verdade, o verdadeiro “espírito de natal” pode ser representado por essa união internacional e comemorado como uma graça especial do Divino que em uma noite globaliza a população do planeta em torno de um único objetivo: dar e receber presente. Reflexo, lógico dos três Reis Magos que levaram até a estalagem onde o menino Deus nasceu os seus presentes para homenagear a vinda do filho do Pai Eterno ao mundo.



Talvez tenha sido o primeiro “lobby” capitalista inconsciente da história do mundo que surtiu efeito positivo para os fabricantes de presentes, não apenas para as grandes indústrias, mas também para os produtos artesanais que são aqueles mais criativos e baratos trocados entre os assalariados e, ainda, o mais aconselhável pela cartilha bíblica: o abraço e o beijo, muito comum entre os excluídos socialmente que surfam na vida abaixo da linha da miséria extrema.



Mas é natal. E o que você fez? Pergunta a canção popularizada ao redor do mundo em diversas línguas e com diversos filmetes para lembrar que você tem culpa no cartório e que, no natal, quando se festeja o aniversário de Jesus Cristo, você tem uma dívida, se não moral, pelo menos existencial e social para com alguém que deve ser paga quando os ponteiros do relógio se encontrarem no número 12 anunciando que são 24 horas e o dia do nascimento do filho de Deus começou.



Assim, quando os sinos das igrejas tocarem ao longe e os fogos de artifícios explodirem no céu enchendo de barulho a noite reflexiva e calma, é hora de dar e receber. Mas não se pode dar e, muito menos receber, se a pança não estiver aboletada de comida e a mente não apresentar os sintomas explícitos de estar naufragando em cervejas, vinhos, batidas, uísques, vodcas, martínis, pingas e por aí a lista é longa e com preferencias pessoais e regionais. Nesse momento acontece o tal do amigo secreto que se traduzido ao pé da letra se torna a coisa mais hipócrita do natal, mas que muita alegria dá ao capitalismo selvagem, inclusive com o aval dos proletários comunistas derrotados e cooptados pelo “espírito do natal”.



Depois do troca-troca entre todos e com tudo, é hora de viver o natal em sua plenitude e complexidade. Tudo se torna fraternal; todos se apresentam cordiais; tudo é amor em essência; todos se confraternizam solidariamente (alguns com mais ênfase que outros); tudo é luz, paz, união e, em alguns casos tesão; todos representam seus papéis; tudo é consumido sem pudor; todos se realizam; e tudo acontece de acordo como programado de agora e da época quando aconteceu a festa cristã na estalagem, lá na Judeia há mais de dois mil anos.



Como toda festa com espírito natalino, onde homens, mulheres, adolescentes e crianças participam, os ânimos vão se alterando, as emoções aflorando, os pecados acumulando, o cansaço dominando e, por fim, a festa terminando. Mas ainda é natal mesmo sem o burburinho descomedido e os atrevimentos permitidos dos comensais. O filho de Deus já nasceu. Os Reis Magos já deram seus presentes. 


Um novo ano vai acontecer e a vida voltará ao normal sem o “espírito do natal”, sem dúvida! 




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“Jão Merinho”, o cara!

(Marcus Ottoni)

Ele era o tipo mineirinho come quieto. Daqueles que a tudo observa sem abrir o bico e lá para o final da conversa, quando o assunto parece esgotado, vinha ele com o seu pitaco com ares de critica apimentada mesmo que nenhum elo com o assunto debatido houvesse em sua colocação professoral, diga-se de passagem.

“João Merinho” era o cara! Não como esse que o gringo elogiou em público numa reunião dos grandes com os nanicos em crescimento. Esse é pulha, não é o cara mesmo. Mas “João Merinho” o era e, para toda eternidade, o será. Sempre matutando suas caraminholas com aquele ar de desinteressado, coçando o queijo ou com as mãos enfiados nos bolsos da calça encostado numa parede ou debruçado num balcão de botequim.

Botequim! Isso sim é ambiente de boêmia. Não bar com todos os seus neons piscantes e brilhantes. Bar não reúne boêmios, não aglutina poetas, não interage com gente e não cria intimidade entre homens e bebidas. Botequim sim. Botequim é a própria cara da rebeldia, seja ela intelectual, física, social, sexual, paradoxal, temporal, marginal ou em qual “al” a rebeldia se encaixe e forme sua “tchurma” como gosta de classificar o jornalista Miranda Sá.

Voltando a “Jão Merinho”. Ele, como já disse era o cara. Sempre se aproximava da rodinha dos “descolados” para "piruar" a conversa. Mais escutava do que falava. Na verdade, como já disse, pouco falava, era "todo ouvidos" no papo daqueles “entendidos de tudo” que não sacavam porra nenhuma de nada e se deixavam laurear como se acadêmicos dos assuntos contemporâneos fossem eles os mais esclarecidos.

Assim, sempre reunidos suiçamente, no mesmo horário e no mesmo lugar, eles escolhiam um assunto em pauta para iniciar um debate infrutífero e desnecessário para a ocasião. Porém, com ares de intelectuais de porta de xilindró, a “tchurma” deitava falação e ia esticando o papo até quase a noite penetrar profundamente no botequim pela porta da frente tirando a claridade das janelas e tornando o ambiente propício para uma acalorada discussão não tão coerente como gostariam que fosse.

E lá estava “Jão Merinho”, atento, olhos e ouvidos pregados no grupo e vigilantes para não perder cada detalhe da conversa e cada um dos movimentos feitos por todos durante o debate do assunto inútil que, como começava, terminaria sem qualquer definição, ponto de consenso ou mesmo o acirramento dos pontos de vistas de cada um. Lá estava ele como coiote na espreita da presa.

As horas contavam a favor de “Jão Merinho” porque quanto mais tempo a discussão entre os “entendidos” durava, mais bebida era consumida por eles e menos lembrança tinham do que falavam ou do que cada um disse sobre o tema em questão. Atento, ele por vezes bebericava sua pinga com limão (não era caipirinha, não) e depois de engolir de um gole só o conteúdo do copinho, respirava e mirava naquele que estava com a palavra no momento.

Com a proximidade do fim do debate, “Jão Merinho” parecia adivinhar a hora em que o grupo bateria o martelo dando por encerrada a discussão, mesmo sem ter esgotado todos os vieses que o assunto apresentava. Mas era o ponto final e, ponto final. Nessa hora, era a hora de “Jão Merinho” entrar em cena. Ele o fazia consciente depois de engolir “goela à baixo” o conteúdo de uns doze copinhos de pinga com limão espremido na hora.

Quando o grupo fazia o brinde do final do papo, ele entrava de sola, como beque de futebol de várzea jogando com chuteira de travas de prego e couro ressequido pela falta de graxa e excesso de lama seca acumulada das partidas jogadas. Vai na canela para parar a jogada. Voadora baixa, da cintura até os tornozelos. Pimba! derruba qualquer atacante como ventania de tufão em casebre de taipa na beira mar.

Era ele, sem dúvida. Pigarreava, tossia uma tosse cinematográfica, enfiava as mãos nos bolsos e soltava o verbo, cuidadosamente articulado pela entonação professoral que gostava de dar aos seus pitacos. O grupo, como era de praxe, suspendia o final do encontro, descia os copos na mesa e miravam “Jão Merinho” para ouvir a tese que viria daquele que horas a fio ouviu calado ouvindo papo furado dos “entendidos”.

Por alguns minutos ele discursava bonito para o grupo e, quando todos pensavam que ainda tinham mais argumentos para ouvir, ele simplesmente se despedia, tomava o último copo de pinga com limão e dava no pé. Os “entendidos”, então, davam início a mais uma rodada de bebida e debate sobre as colocações feitas por “Jão Merinho” esticando a permanência no botequim até bem mais tarde.


“João Merinho” era o cara. Reza a lenda que era sócio do dono do botequim.

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A cidade entre as colinas das Gerais

(Marcus Ottoni)



Choveu durante três dias e três noites sem parar. Ora uma chuva torrencial a causar transtornos para a cidade, inundando ruas e transformando o cotidiano da “Cidade do Sol” num dilúvio interminável, ora uma chuva fina, leve, como garoa paulista, a tocar suavemente, como uma carícia, o rosto, o corpo, a alma de quem necessitava sair as ruas para ganhar o pão de cada dia. Mas choveu. 



Isso é bom para os nordestinos que nos 365 dias do ano só conhecem, apenas, duas estações: o verão, quando o sol reina absoluto durante dias e, o inverno, quando as chuvas esperadas desabam do céu refrescando a quentura das terras secas e quebradiças das lavouras sertanejas. Mas choveu. Choveu depois de um longo e calorento verão para deleite dos turistas, dos veranistas, dos visitantes, dos amantes de temporadas etc e etc e tal. 



Agora parou de chover. Abriu no céu um sol tipo assim veranico. Faz calor e o cheiro de terra molhada foi substituído pelo aroma de peixe frito com tapioca, cachaça com limão e gargalhadas de quem nada mais tem para fazer a não ser relaxar e desfrutar de um mar azul esverdeado com 360 graus de visibilidade e, prazeirosamente, convidativo a contemplação  introspectiva, ou seja, nada a fazer além da cerveja, da conversa amiga e do peixe frito com tapioca.



Porém, sentado estrategicamente num dos tantos “boxes” no  antigo mercado público da praia da Redinha, espreitando o mar com suas ondas a brincar com as jangadas que teimam e invadir seus domínios em busca do sustento de dezenas de pescadores e suas famílias, deixo minha mente passear pelas lembranças e  viajo quase quatro mil quilômetros (e não sei quantos anos luz em direção ao passado) para aportar na minha querida São João de 30 anos atrás.



É nítido em minha mente o velho pontilhão da ferrovia que unia a Paulo Freitas a Antônio Rocha, caminho necessário para a “Caeira”, onde, em sua entrada, a velha casa de Rominho, um excelente lateral esquerdo das peladas dos finais de semana. Pelo pontilhão passaram Murilo da Bili, Coquinho, William El-Corab, Nilsinho, Manelão, Ivanzinho, Claret, João Neto, Ademarsinho e tantos outros para jogar uma boa pelada nos campos da “Caeira”. E, sempre depois do jogo, muitas vezes enlameados, os “atletas” tinham como parada obrigatória o “Bar do Galo”, esquina estratégica para um picolé “espumoni”, ou uma coca-cola bem gelada acompanhada por um  pastel quentinho.



A memória é fantástica e basta começar a recordar que ela lhe leva por caminhos nunca dantes esquecidos de sua vida, talvez apenas escondidos pelos afazeres do dia-a-dia. Relembro com saudades de “menino buchudo” os bons tempos em que a turma se reunia, sempre a noite. Naquela época ainda não havia a doença televisão com suas novelas esquizofrênicas e suas interatividades dos “Big Brothers” da vida, dos Faustãos, dos Gugus, das apologias a violência e ao sexo das lacraias, dos Tchans, e toda alienação cultural que aniquila as gerações do nosso país. 



Ouvir as piadas contadas com tamanho entusiasmo e tanta realidade pelo Murilo da Bili, era mesmo fantástico ouvi-lo narrar uma história “verídica” recheada de mentiras. Sua interpretação merecia um “Oscar”. Seu público era cativo. Suas histórias ganhavam vida e perseguiam seus ouvintes, no caso nós, durante vários dias e noites. Era muito bom e divertido descobrir, através do apito da locomotiva das 21 horas, antes que ela cruzasse o pontilhão com destino a Matosinho,  o seu número.  68? 32? 25?  Quem sabia?  As vezes se acertava. Pura coincidência?  Ninguém ao certo sabia mesmo...



O turbilhão de recordações cria redemoinhos de lembranças como num grande caleidoscópio com imagens fragmentadas multicoloridas. As emoções sobrepõem-se em escala desproporcional e a alegria de recordar o passado é, antes de tudo uma felicidade inenarrável. 



O sol esquenta e me faz lembra que há mais de 20 minutos que minha cerveja continua convidativa a esperar pela minha boca. Ergo o copo suado, brindo imaginariamente o passado e bebo-a toda em um único gole. 


São João del-Rey, bons anos 60 na cidade entre as colinas das Gerais.




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O Flatulento II

( Paulo Estanislau )





Aos poucos todos foram chegando, muito embora não fosse seu costume, o primeiro foi o Comissário Luciano, aquele que, segundo sua mãe, e mãe não mente, quando bebê após mamar não arrotava, flatulava. Chegaram o Comandante da equipe, Piloto, Copiloto e Engenheiro de Voo, esses subiram ao Despacho para prepararem a papelada.  

Curiosamente, o Luciano não subiu ao Despacho Operacional (DO), ficou na garagem, que ficava no subsolo do prédio, em frente ao elevador esperando os demais colegas da equipe de voo. Sua cara não era boa, como boa não era sua intenção. Certamente, não seria difícil para quem o conhecia imaginar qual era.



Os demais companheiros da equipe foram chegando quase ao mesmo tempo. Quando todos estavam reunidos, alguém propôs que subissem e, entraram no elevador. Seria uma longa viagem até o segundo andar, essa no hangar, a outra, seria para fortaleza, voo 304 da Transbrasil. A expressão viagem até o segundo andar justifica-se pela presença no elevador do comissário Luciano. 



Se ele tivesse o mínimo de capacidade de pressagiar não poria em prática o seu plano.  Mas não tinha e pôs. Mal as portas fecharam-se, aquele elevador transformou-se em uma pequena cela de tortura, uma verdadeira câmara de gás nazista. Gases extremamente venenosos, liberados pelo flatulento comissário Lucky Luciano, esse, o de Carpina, não aquele mafioso italiano nascido na Sicília.

Alguém, após aquela tentativa de genocídio, ainda com uma leve capacidade para o raciocínio, apertou o botão para o térreo. Bastou as portas se abrirem, todos pularam fora, menos o proprietário daqueles gases, o responsável pela transformação daquele ambiente. Não lhe foi, pelos demais comissários, permitida sua saída. Ele subiu, sozinho, naquele ambiente fétido.
O inesperado existe e, obviamente, sem que ele esperasse aconteceu. As portas abriram-se no primeiro andar, diante dele, um dos diretores mais sérios da Empresa. Sério e apressado, entrou rapidamente no elevador. Mais rapidamente ainda, saiu o comissário Luciano que, antes das portas trancarem por completo aquele ilustre cidadão, naquela câmara de tortura, escutou um sonoro, “P... Q.. P....”! 

Pior, aquele diretor viajaria com aquela equipe até o Recife.  Não fossem os apelos dos demais colegas de tripulação, ele, o flatulento, não faria aquela viagem. Faltava-lhe coragem para encarar o seu diretor.




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Deixei meu coração na curva da estrada

( Marcus Ottoni )



Meu coração ficou na curva da estrada onde a vida perdeu seu rumo por causa de um amor que enveredou por outro caminho. Ficou lá, quieto e soluçante a reclamar da sina de amanhecer só depois de noites e noites acompanhadas por outro coração. Frágil, apenas na aparência é preciso dizer, mas forte o suficiente para deixar pelo caminho um coração estraçalhado pela perda inesperada. Mas ficou lá... amuado e inconsolado.



Ando eu hoje sem coração. Não sei se o que trago no peito, mas sei que um coração pulsante não é mais. Talvez uma réplica do original esculpido em pedra sabão, ou mármore polida, ou rocha bruta, ou coisa semelhante, e com o toque genial de um artista que se esconde no mais íntimo de mim e, mesmo assim, é, para mim, totalmente desconhecido. 



Anônimo, esse artista ativista vai acompanhando meu pisar pelo mundo, mudo e atento aos momentos por que minha vida passa sem deixar passar qualquer detalhe por menor que seja no momento do fato ou do ato falho, muitas vezes impensado, mas inconsequente e desastroso quando o sentimento é muito mais do que o próprio sentir por dentro sem permitir exposição para se precaver de uma dor que dói pior que a dor mais doída de todas as dores sentidas e as por sentir.



Assim, sem coração original, sem o amor que se foi, vou indo sem rumo, sem sangue nas veias, sem lenço ou documento, sem direção... mas vou porque tenho que ir e, indo, vou seguindo sempre para onde não sei. Só sei que vou comigo mesmo e só como todos que juram fidelidade a si próprio, buscando, sem saber o que, um lugar no mundo, um ponto no universo, uma companhia na vida, embora a própria companhia já seja o suficiente.



Sei que um dia o caminho acaba e a vida que era longa ficará mais curta do que na verdade é. E como caminhar é buscar o destino, vou seguindo meus passos pelas estradas que construo com meus ideais. Assim, fazendo do caminho a jornada a que me propus quando ainda pequeno me dei conta que o faz de conta dos homens não é mera coincidência, mas sim a ilusão de que estar vivo bastaria para ser feliz. 



Vou como quem não sabe para onde vai ou onde quer chegar. Indo, sei que vivo e, vivo, sei que vou a algum lugar que não sei, ainda, onde é. 



Mas vou comigo mesmo...vou.





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300 Picaretas?

(Paulo Estanislau)





De acordo com a ciência, quando você nasce traz consigo os genes que possuem as características que lhe acompanharão por toda sua existência, desde a cor dos olhos, da pele, passando pelo caráter até a formação religiosa. Essa última podendo mudar, ou mesmo acabar, dependendo do nível de formação e informação que você alcance.




Mesmo sendo um admirador e ferrenho defensor da tese de que a ciência tudo prova, tenho minhas dúvidas quanto a todo ser humano possuir o DNA com o gene responsável pela formação do caráter.



Cada um de nós, seres viventes, por vezes racionais, conhece ou tem informação da existência de uma pessoa totalmente desprovida dessa característica. Isso sem falar nas figuras que a cada quadriênio se alojam no nosso, hoje vergonhoso, Congresso Nacional que, segundo o Sr. Luís Inácio da Silva, possuía trezentos picaretas. Se é verdade que picareta não tem caráter, podemos então afirmar que cada um de nós conhece pelo menos trezentos e um cidadãos desprovidos do gene tão fundamental à espécie humana, o gene do caráter.



Justiça seja feita, não foi enquanto presidente da república, que o Sr. Lula fez tal afirmação, foi  em legislatura anterior a da sua eleição.  Todavia, também é verdade que durante sua gestão e após a posse de alguns de seus assessores diretos, o número de parlamentares desprovidos desse gene cresceu. E como cresceu! Não quero dizer com isso que o Presidente Lula e seus assessores diretos sejam os responsáveis pelo imenso crescimento de políticos sem caráter no Brasil, não isso seria um absurdo, assim sendo, eu jamais pensaria em tal afirmativa.


Portanto, diante de tudo que foi dito e escrito, discordo da afirmação científica de que todo ser humano nasce com essa caráter-rística.  Melhor seria dizer que cada pessoa é diferente de outra, podendo uma nascer com esse gene e outra não. A não ser, é claro, que ele possa ser expelido do corpo junto com os uísques, vodkas, cachaças e as fumaças dos charutos cubanos tão apreciados pelos nossos eminentes parlamentares e outros políticos mais.



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Foi tu?

(Marcus Ottoni)



-Foi tu?



A pergunta ecoou na sala silenciosa rompendo o suspense do filme de terror que prendia a atenção do grupo de meninas adolescentes com a respiração suspensa pela cena macabra onde o vilão ia, sem nenhuma cerimônia, irá decepar a cabeça da linda jovem protagonista do enredo cinematográfico elaborado e filmando por um chinês totalmente desqualificado para a arte cênica.



O grito, naquele silêncio, estrondou na cabeça das meninas sem elas compreenderem que aquela voz raivosa e acusatória não fazia parte da história que se desenrolava no telão da big hipper televisão de uma porrada de polegadas pregada na parede. Não, aquele grito era “out the movie”, embora fosse tão assustador como a cena e com um agravante: era real e revelava uma autoria possessa querendo uma culpada para alguma coisa que não saiu bem.



Uma das adolescentes empurrou o dedo no controle paralisando a cena como se fosse a velha brincadeira de “estatua!”. As cabeças cheias de cabeleiras longas, algumas cacheadas, outras crespas, lisas e alisadas foram se virando em câmera lenta para o lugar de onde partiu a voz com aquela entonação questionadora. Uma a uma todas se viraram em direção a dona da inquisição.



Ali, parada, esguia como vassoura de bruxa, trajando um longo vestido preto com detalhes em flor amareladas na cintura e cabelos presos por um grande pente de osso de tartaruga, a mulher com as mãos na cintura arfava de ira e repetia incessantemente: foi tu? Olhos arregalados, frio na espinha e com o goto preso no nó da garganta, as adolescentes não conseguiam murmurar uma vogal sequer.



A mulher, dona do grito questionador, entendeu a situação e chamou para si o controle do ambiente. Sem se mexer, começou a apontar o dedo magro e comprido para cada uma das seis adolescentes repetindo a mesma pergunta que varou o lugar no exato momento em que o vilão erguia o facão para separar a cabeça da menina branquinha com aquele maravilhoso corpo de adolescente em franca expansão da luxuria. A cena estava pregada na tela enorme pendurada na parede.



O dedo magro e comprido ia e vinha num semicírculo imaginário que cortava o ar e parava por segundos em frente a cada uma das adolescentes. A pergunta era repetida, repetida, repetida e, por mais que o tom da voz da mulher demonstrasse ira, nenhuma das meninas presas pelo grito e enfeitiçadas pelo dedo magro de unhas bem-feitas cobertas por um esmalte vermelho ousava responder. Acompanhavam o trajeto do dedo apenas com o olhar sem mexer a cabeça.



Assim se passaram alguns minutos até que o dedo desceu de sua altitude e colou, juntos com os outros dedos e a mão espalmada, na coxa direita da mulher por cima do pano preto do vestido. O silêncio empoderou-se, maximizou-se, ampliou a quietude e ressoou as respirações cadenciadas de cada uma das meninas na sala. O que parecia estar escuro para melhorar a visão do filme na tela na parede, tornou-se escuridão quase completa. 



A luz, fraca e tímida, que a tela reproduzia para clarear o lugar mal conseguia definir os traços dos rostos. De onde estava parada, a mulher de longo vestido preto tornou-se complemento da escuridão e apenas sua pele alva aparecia tal qual uma monja hibernada no inverno ucraniano. Era a própria semelhança do fantasma da infância que percorre os quartos para ver quem molhou a cama ou quem finge dormir para desfrutar de prazeres solitários e pecaminosos.



Silêncio. Ninguém se mexe. Ninguém fala. Mas a pergunta reverberava na cabeça das adolescentes como sino de igreja em dia de quermesse. Elas se mantinham dominadas pela mulher e seu estereotipo de bruxa má, ou de fantasma agoureiro, ou de megera indomável. Ou sei lá o que ela parecia ser naquele momento. Só a pergunta tinha vida naquela sala, sem resposta, ainda. 



Uma das meninas levantou-se, vagarosamente e com gestos calculados. Foi se erguendo lentamente até ficar totalmente em pé e frente a frente com a mulher de preto com o dedo magro e comprido. Olhou firme nos olhos dela, fez seu olhar entrar sem pedir licença pelos olhos e percorrer sem pudor a alma que se ocultava por trás daqueles meninas negras e grandes pregadas e vivas no globo ocular. Sorriu ao chegar no fim da busca na alma da mulher. Viu o que não deveria ter visto.



Ouviu então a pergunta novamente: Foi tu? Agora com destino certo e com a mesma ira na entonação. Sorriu a jovem adolescente e olhou para as outras meninas que se mantinham ajoelhadas em posição de submissão ao questionamento. Encarou a mulher, tocou-lhe os lábios com a ponta do dedo e disse:



- Silêncio, a mocinha vai perder a cabeça. 



Voltou-se para junto das outras meninas e destravou o filme...  





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Os lençóis de Bramante


( Paulo Estanislau )





Quando em meio a grupo de nordestinos, principalmente pernambucanos, tem-se que prestar muita atenção antes de se responder a qualquer pergunta. Rezam velhas máximas daquelas bandas que:  “Em boca fechada não entra mosca”, ou, “Se não souber o que falar, mió calá”.  Essa última, pra se ficar mais atento. 



Em uma dessas rodas de nordestinos, em um bar da Asa Norte, a discussão, regada a cerveja, girava em torno da qualidade de escritores e poetas nacionais e latino-americanos. Certamente esse embate não levaria a lugar nenhum. E não era mesmo pra levar. O que se pretendia era ficar ali, jogando conversa fora. Além do mais, debate sobre predileção ou todo mundo perde, ou todo mundo ganha, ou acaba em confusão. E foi quase isso que aconteceu. Não pela quantidade de líquido etílico já ingerido, mas pela diversidade de gostos presente naquela mesa não se chegaria jamais a qualquer consenso.  



Conforme um outro velho ditado, muito ouvido em terras sertanejas:  “Gosto é que nem olho, cada um tem um”.  



Dentre os amigos havia leitores de Gilberto Freire e Ariano Suassuna, mas e que gostava de ouvir Pedro Paulo e Matheus, dá pra entender? outro, adorava ler Jorge Amado e Graciliano Ramos, porém, ouvia pagode.  Ainda dizia, com toda convicção, que o melhor escritor da América Latina era Pablo Neruda. Até que poderia ter razão, fosse o Ricardo Eliezer Reyes ou Pablo Neruda como preferiu ser chamado, escritor. Era poeta. O melhor do Mundo, na minha modestíssima opinião. Se poeta também é escritor isso é outra discussão. Na minha, mais uma vez modestíssima e quase leiga opinião, o escritor fala com a cabeça e o poeta escreve com o coração. Pode não parecer, mas, na forma, existe distinção.  



Nessas reuniões tem sempre um mais engraçado e Jorge é um desses.  Ele é daqueles que por trabalhar desde menino nunca teve muito tempo para leitura, a não ser dos livros didáticos. Quando raro, lia bolinha, Tio Patinhas ou o fantasma. O único livro, como ele mesmo define, com cara de livro que leu foi; “A escuridão”, da escritora Adelaide Carraro. Mas a sua inteligência e espirituosidade transcendem aos aprendizados em leituras de grandes editoriais, sejam livros, revistas ou jornais. Em um desses arroubos de vivacidade, ele, aproveitando o culto debate a respeito de poetas e escritores da nossa latino-América, perguntou aos debatedores daquela mesa se alguém já teria visto ou comprado algo de Bramante. 

Certamente, o espirituoso conterrâneo, não se referia ao arquiteto e artista que divide com Michelangelo a autoria do projeto da Basílica de São Pedro no Vaticano. Acredito até, que não existia de sua parte qualquer expectativa de obter resposta positiva, a pergunta seria apenas para não ficar sem participação ou, quem sabe, soltar uma simples pegadinha, sem qualquer maldade. Mas houve resposta. E veio do, aparentemente, mais calibrado integrante da mesa. Eu, que estava entre os dois, numa tentativa de desviar o assunto, pois havia compreendido a malícia da pergunta, tentei puxar uma poesia de Augusto dos Anjos. Foi em vão, ouvi do leitor de Bramante um sonoro:  --- Cala a boca aí pô, a gente está conversando!  

Fazer o que?  Calei!  Em seguida, não sei por que motivo, já que certamente jamais havia lido qualquer obra daquele autor, esticou a conversa e fez a pergunta:  

--- Você viu o que?

A resposta foi imediata:


--- Os meus lençóis! 

E completou sorrindo. --- Eles são de Bramante.


Passaram-se alguns segundos até que o leitor de Bramante desse conta do que estava acontecendo. Nesse momento os conterrâneos do Jorge pararam as conversas e gargalhavam copiosamente.  Ele, sentindo-se ofendido e de orgulho ferido pelo mico que pagara com aquela brincadeira, principalmente porque estava de namorada nova, e os risos, mesmo os de canto de boca, notadamente agravavam seu constrangimento, levantou-se e jogou sobre a mesa sua parte na conta e foi embora, prometendo jamais sentar em uma roda de amigos em que o Jorge estivesse.


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O amargo doce sabor da liberdade

(Marcus Ottoni)

Toda liberdade tem seu gosto amargo no doce sabor de sua conquista. Seja qual for a liberdade que você persiga, ela sempre virá acompanhada por um gosto amargo pela quebra dos paradigmas que cerceiam toda e qualquer liberdade. Romper com o permitido, sabendo que o proibido se tornará permitido e que, mais na frente, alguém o romperá com um novo permitido alçado no proibido que poderá ser o antigo permitido, agora, por você, feito proibido.

Então, não há doçura na conquista da liberdade. Essa luta é feita de confronto e novos pontos de partida, se não, alguns outros finalizando o que era e que pela quebra dos paradigmas deixou de ser o que, para você, nunca foi liberdade em sua totalidade e na essência do termo. Se houver doçura no gosto da liberdade conquistada, será apenas pela questão de se sentir único em um momento que também lhe parecerá único e eterno, mesmo que seja chama e infinito enquanto durar, como disse o poeta.

Mas, toda liberdade tem um preço. E não é o da eterna vigilância arrogante e prepotente. Será, se possível for, a angustia terminada e a ansiedade vencida pela nova ordem que, embora no primeiro momento pareça anárquica, é mais ordeira e adepta de dogmas e ritos do que qualquer movimento religioso ou seita demoníaca em sua profusão apocalíptica. Eis que saboreemos o amargo gosto doce da liberdade.

E por que o doce sabor de tão cobiçado sentimento é considerado amargo pela sua conquista? Pode ser que a liberdade não seja o que realmente aparenta ser e isso a faz amarga como o fel e doce como o desejo encantado na maçã do paraíso? Tudo se resume em apenas uma questão: quanto estamos dispostos a conquistar a liberdade que sonhamos desde que nos encubaram no ventre materno?

E se a liberdade que sonhamos se misturar a outras liberdades que não conhecemos e que são desejos de terceiros? Serão ou haverão tantas liberdades ou algumas delas se fantasiam para esconder sua verdadeira face de libertinagem? Há de se supor, pelo menos os mais incrédulos viventes, que a liberdade não vem por acaso e, muito menos, por caridade ou hereditariedade. Ela se conquista na estrada pela qual seguimos nosso caminho no mundo, mesmo sem saber que escolhemos o caminho por onde deixamos nossas pegadas.

Seria demais inútil a existência de uma só liberdade. Enfadonho e odioso. Pensar que com a existência de uma única liberdade poderíamos perde-la para qualquer um mais sábio, ou mais esperto, ou astuto de academia, ou caviloso, ou outro tipo menos apropriado para apossar-se da liberdade em nome de todos, para todos e com todos a cantar-lhe glórias que se farão, num futuro não muito longínquo, grilhões de liberdade aprisionando todos para um só.


Então cantemos as liberdades plurais. Que todas elas sejam dignas do amargo doce sabor da liberdade que queremos, seja ela qual for e venha como vier. 


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A disputa 


( Paulo Estanislau )



Poucas vezes no mundo se viu um enfrentamento de um Davi com um Golias em que o mais fraco levasse vantagem sobre o mais forte. Isso poderia ser considerado obra de ficção não fosse a guerra do Vietnã. Para ser sincero, no momento me vêm à memória apenas três casos. A vitória de Ho Chi Minh contra Tio Sam, o clássico caso editado nos livros bíblicos, que me parece obra de ficção ilustrativa da fé, sem possibilidade de comprovação científica e a disputa entre Messias e o Olavo Setúbal, o poderoso empresário e banqueiro. Deixem-me primeiro explicar quem é cada um dos protagonistas do fato em questão. 


Olavo Setúbal, homem alto, pouco mais de dois terços da altura do Golias dos textos bíblicos, forte, cara de poucos amigos, muito embora uma pessoa educada e simpática com seus funcionários e dono do Conglomerado Itaú, um dos maiores do país. 

Messias, meu amigo, pessoa simples, inteligente, prestativo, pouco mais de 1 m e 60 cm, portanto, menor que o pretenso herói bíblico Davi, pelo que se extrai dos livros religiosos, magro, escriturário no banco do seu Olavo. O meu amigo, trabalhava na compensação, no turno da madrugada. Por ser um sujeito calado e de uma humilde invejável, era o alvo preferido dos colegas para as pegadinhas e algumas sacanagens. Certa vez, por ser baixinho, pediram-no para pegar, no cestão de lixo, um relatório que alguém havia jogado fora por engano. Ele, do alto de sua inocência, solícito como sempre, enfiou sua cabeça e esticou o braço para pegar o tal relatório, quando maldosamente teve suas pernas puxadas e foi jogado de cabeça para baixo naquele cabaz, que tinha um tamanho próximo do seu e era dotado de rodas para facilitar o deslocamento. Alguns amigos, da onça e não do nosso amigo Messias, o empurraram, por longos três ou quatro longos minutos, pelo corredor que media uns cinquenta metros. Até que o chefe do setor, Rubão apareceu e pediu, em gargalhada, para que parassem com aquela brincadeira. 
Voltemos ao caso em questão.  Certa madrugada, um servidor do banco, que trabalhava com motoristas das chefias, encontra com o Messias no corredor e lhe pede para levar uma máquina de escrever à sala da diretoria pois o Doutor Olavo precisava bater um documento para ir a uma reunião. O meu amigo olhou para o relógio que controlava o ponto dos funcionários, voltou-se para o colega e exclamou determinado: 

--- Se o Doutor Olavo quiser uma máquina de escrever, ele que venha buscar. 

O aquele funcionário, possuidor das mesmas qualidades do nosso amigo, ainda tentou persuadi-lo a lhe entregar a máquina de escrever, mas ele, irredutível, não cedeu; 

--- Se o Olavo Setúbal vier buscar, eu entrego. 

Analisemos juntos. Uma hora da manhã de uma sexta-feira, agência do banco no Setor Comercial Sul, local perigoso para qualquer ser vivente naquele horário. Só poderia ser mais uma sacanagem de algum colega. Era mais uma pegadinha para fazê-lo levar a máquina de datilografia até o primeiro andar. Ademais, o dono do banco trabalhando esse horário, em Brasília. Essa não! Nessa, nem o Messias cairia. 

O motorista desceu as escadas para a sala da diretoria cabisbaixo, deixando o meu amigo sorrindo. Certo de que teria anulado mais uma pegadinha dos colegas, foi feliz ao CPD contar o fato. Entrou, puxou uma cadeira e sentou-se à minha frente de costas para a porta e, sorrindo começou o seu relato. Eu interrompendo meu trabalho, era todo ouvidos. 

O Messias não teve tempo de contar toda a história, de repente um senhor de aproximadamente dois metros de altura, forte, com cara de poucos amigos, certamente pelo cansaço de um dia inteiro de reuniões, entra, dá boa noite e pergunta se ali teria alguma máquina de datilografia. Obviamente, todos no CPD, ficamos surpresos com a visita do patrão. Messias mais ainda. Virou-se, olhou atentamente para aquele senhor, levantou-se, sentou-se, pôs-se de pé novamente e, nervoso se entregou. 

-- Olha Senhor Doutor Olavo, eu pensei que fosse brincadeira do pessoal. 

Talvez aquela auto delação, pela experiência do patrão, fosse completamente desnecessária. Aquele senhor interrompeu o nosso amigo Messias, já angustiado e nervoso, dizendo: 

-- Calma meu rapaz, eu só quero saber onde tem uma máquina de datilografia. 

E o diálogo continuou: 

-- Eu vou buscar. Pode deixar que eu levo para o senhor Doutor Olavo. 

-- Não precisa. Eu já estou aqui, eu levo. 

-- Não senhor, pode deixar que eu levo para o senhor Doutor Olavo. E saíram os dois nessa contenda, lado a lado à procura daquela máquina no final do corredor, que para o Messias tinha, naquele momento, uns dez quilômetros. 
Um Golias calmo e até afável. Um Davi angustiado e irredutível que Vez ou outra suas pequenas pernas cambaleavam, perdiam o compasso demonstrando seu nervosismo continuava aquela contenda pelo longo corredor.

-- Não senhor, pode deixar que eu levo para o Senhor Doutor Olavo. 

Talvez divertindo-se com a situação o patrão brincou: 

--- Está bem, levamos os dois. 

O Messias, tentando se redimir de um erro que certamente não cometera, pois suas pequenas pernas para funcionar, acelerou os passos em direção à compensação, pegou a máquina de datilografia, desceu as escadas enquanto senhor Olavo o seguia, e a deixou na mesa do patrão. Saiu antes que o chefe entrasse na sala, sequer viu ou ouviu o agradecimento e o sorriso daquele Golias. 

O importante é que Messias ganhou a disputa. 

Anos depois deste fato continuava trabalhando no banco. Certamente aquele patrão outrora fora funcionário e tinha total compreensão do ocorrido, inclusive que desta vez, mais uma vez, o Messias havia vencido o Golias.


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A menina do anel de lua e estrela


(Marcus Ottoni)



Uma mesa de bar, uma cerveja gelada, dois jovens, risos e planos pontuais. Mesas ao redor, luzes artificiais, som meloso nos alto-falantes e ao longe uma menina mulher. Olhos que se cruzam, bocas que falam silenciosamente, gestos indo e vindo displicentemente. Sinais descompromissados comprometendo a tarde, brindes no ar, algas no paladar. Vai ou fica? Abre outra. Mesas que se aproximam, mãos que se tocam, sorrisos que se envolvem. Dois com uma. Uma pra dois.



Ao longe o apito de trem que parte rumo as Gerais. Burburinho de pessoas indo e vindo para conseguir ir para algum lugar. Barulhos misturando sons e sons de todos os barulhos. Luzes esbranquiçadas, brilhos de todas as cores, trejeitos, jeitos sem jeito de ficar ajeitado, cansaço, espera, partida, chegada. O riso que esconde o desejo, o desejo desperto e aceso. A mão que tateia outra mão. A boca que revela a luxúria da língua. 



Sons que se emitem sem nada dizer. A mente caminha na contramão das palavras. O toque sutil é o toque viril. A pele treme, o corpo se molha, o desejo transparece. Por que não? Por que sim? Melhor o sim do que o não. O pano esconde a silhueta perfeita revelada pela imaginação. Outros panos ocultam o pecado crescendo sem controle. Todos são únicos em forma e atração. Todos são carne e emoção, volúpia e tentação.



No submundo da mesa pernas se entrelaçam. Peles se arrepiam. Panos sobem e desnudam caminhos pecaminosos. Algo cresce e algo se molha. Toque e mais um toque e tudo se torna explícito na mente. Cumplicidade e ousadia. Atrevimento e consentimento. Liberdade e libertinagem. O que se abre consome o que cresce. Há um pecado a caminho e uma perversão em curso. Que seja assim, por todos nós e para todos nós.



Pulsos ornamentados. Orelhas com ornamentos brilhantes. Dedos cercados por anéis. Lua e estrela. Um véu cobre o passado. O futuro encharcado de Vodka. Fumaça que se aspira, loucura que se permite. A estrada mudou. O caminho do pecado não. Vai por aí para se chegar ali. Uma porta, um corredor. Sem destino, sem pudor, sem roupa alguma por algum tempo. Dois e uma... uma com dois. Uma cama, uma meia luz, uma doce delicia de carne e suor.



Se abre enfim. Assim se faz. Cresce em mim, entra em ti. Vai e vem como a viagem de trem. Mais um com uma, uma com dois. Final de tudo. Tudo no seu final. Nada fica. O sono, o descanso, o abandono. Se fica bem, não sei nem saberei. Se fica mal, sei que assim foi. Se fica nua, fica até o fim. Partir é como chegar. Voltar de onde se foi. Estar no mesmo lugar. Sair de lá e por aqui aportar. E lá? Ficará a emoção satisfeita? A dor será profunda? Haverá desespero?



Não importa se a porta não fechou. Se uma faca cega corta a carne e sangra a alma. Não faz sentido o que vem depois. O prazer se fez presente. Não se sente o que sente outra pessoa. Sentimentos são adereços da alma que carregamos de tempos em tempos. Sem tempo para reflexões, para contar as muitas emoções. 



Já faz tempo e o tempo não apaga a menina do anel de lua e estrela. Penso em você, fico com saudade. Conta pra mim, diz como te encontro. Quem é você, qual o seu nome...



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Viva Roberto Carlos!

( Paulo Estanislau )





Existem fatos da vida de um cidadão que não se deve contar, mesmo que não deponham muito contra sua história. Mas como diz esse grande amigo, ele já percorreu mais da metade do caminho, tem mais passado que futuro, além do mais, todos estamos sujeitos a erros e acertos e, acredito que até hoje, ele acertou mais do que errou.  Por isso vamos à história contada por ele.




Era uma daquelas noites, em que não se tem nada pra fazer. Na televisão era, ou Jornal Nacional enaltecendo os feitos do Governo Ditatorial Militar, ou aquelas novelas que em nada acrescentam à cultura nacional, como até hoje. O jeito era descer e bater papo com os amigos em baixo do bloco. Certamente seria muito mais proveitoso. 

Quem sabe ele encontraria a Teca e poderia namorar um pouquinho. Quem sabe se a Teca não aparecesse, a Lene poderia estar e poderiam matar saudade daquele antigo namoro. Como diz a juventude de hoje, ele estava podendo. Novo, bonito (pelo menos pra sua mãe), olhos verdes, cabelos longos e vinte e poucos quilos a menos que hoje. Só não podia e não queria era ver a cara do João Figueiredo.
Desceu tranquilo e esperançoso as escadas do seu bloco. Nem Teca, nem Lene, mas para sua sorte encontrou seu amigo e grande companheiro Cauã. Escultor de madeira da maior competência, companheiro de Orloff. Costumavam colocar um litro no congelador na segunda-feira feira e retirá-lo na sexta-feira, quando estava cremoso, para deliciarem-se com aquele néctar cristalino de cereais sentado em baixo do bloco ou na feira do Cruzeiro, à noite, escrevendo poesias.  Mas isso já é outra história.
O amigo estava passando para a parada de ônibus.  Ia à rodoferroviária comprar passagem para ir a Montes Claros, cidade de Minas Gerais, expor alguns trabalhos.  Ele então resolveu acompanhá-lo, como estava de carro, um velho Passat branco de seu irmão, resolveu dar carona para o amigo e aproveitar para  tomar umas cervejas no bar daquela estação rodoviária. 



E lá se foram. Comprariam a passagem, tomariam duas cervejas, talvez três, já que no outro dia acordariam  cedo para a labuta, e voltariam. Esse era o projeto imediato. Essa era a intenção.  Só não contavam em encontrar uma bela e sedutora jovem.  

Chegando ao destino, foram ao guichê, compram a passagem e subiram ao bar para a conclusão das intenções. Nem haviam acabado a primeira garrafa, notaram que uma jovem muito bonita de pele clara e cabelos negros que emolduravam seu lindo rosto, toda coberta por um longo e colorido vestido, daqueles vendidos na feira hippie da torre de televisão, os olhava enquanto degustava um pote de algas marinhas. Resolveram retribuir aos olhares. Trocaram sorrisos. Ofereceram cerveja, ela retribuiu oferecendo algas. A convidaram para a mesa, ela aceitou. Apresentaram-se, mais uma vez ofereceram cerveja e aí, não aceitou, pois tem gordura, só tomava bebida destilada. 
Já na terceira cerveja, que seria a última conforme o combinado, quando já se preparavam para o retorno, surgiu a proposta inusitada de levá-la em Goiânia. O inusitado não estava na proposta, mas na forma. Ela prometeu que se a levassem poderiam curtir, no caminho, um Roberto Carlos. Diante da aparente estranheza de ambos, ela resolveu esclarecer cantando, e começou a cantarolar:



--- “Eu te proponho na madrugada nós nos amarmos, nos entregarmos...”.

Venderam as passagens, dele e a dela que também já havia sido comprada, passaram na Cobal, um mercado do Cruzeiro Velho, compraram um litro do melhor destilado de cereais que encontraram  e foram para Goiânia.
  
O litro de vodka não chegou ao destino, acabou quando chegaram em Anápolis. Entraram naquela cidade para comprar outro litro e por lá ficaram. Quando o dia já expulsava a madrugada e os raios de sol incomodavam os olhos avermelhados pelo sono e pelo cereal resolveram continuar a viagem. Num bate e volta com as despedidas de praxe, voltaram.

Dela, não se teve mais notícia. Nunca mais a viram. Quanto a eles, jamais esqueceram Roberto Carlos.





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Chiquinha de Abricó não sextou

(Marcus Ottoni)

Aquela sexta-feira não seria, jamais, como tantas outras que já passara pela vida de Manequinho. Ele também, como todos os seus amigos mais próximos, não imaginava que aquela sexta-feira acarneirada iria se transformar, no final da noite já na madrugada do sábado, num entrevero corporal apenas por conta de Chiquinha de Abricó.

O café da manhã na grande mesa, rodeado de guloseimas tradicionais e com um cheiro de café preto feito com pó saindo pelo ladrão do velho coador de pano, era o prenúncio de uma dia de glória onde o hinário da felicidade começava com um salve entoado a todo peito, sinalizando que aquele dia, como a noite que o seguira, havia sextado.

Sorriso largo na cara, fome grande no bucho, Manequinho saboreava sem pressa as iguarias da culinária nordestina posta a seu dispor em bandejas feitas de palha de coqueiro trançada nas pernas morenas de Chiquinha de Abricó. Essa arrumação dava, segundo ele dizia, um sabor especial a comida porque o levava a viajar na imaginação em cada pedaço de tapioca, ou queijo de coalho, ou ginga frita, ou mesmo os ovos fritos mal passados quando esses alimentos escorregavam leitosamente pelas bandejas como a passar suavemente pelas coxas da menina moça de 18 anos bem formados.

Assim o café terminou quase uma hora após ter sido servido. Bucho cheio, cabeça cheia, dia cheio, imaginação farta, Manequinho se pôs a descer os degraus de madeira batida que separava os cômodos da casa do amplo quintal que se perdia no horizonte ou onde a vista alcançasse. Ele lembrava o avô sempre que descia aquela escadinha de pau de coqueiro.

“Meu neto, o que tu tá vendo daqui até a barra do horizonte um dia será tudo teu. Olhe com olho aberto e com a cabeça pensante. Esse mundão de terra é da nossa família e se tu não morrer antes de nós tudinho, será teu. Mas não olhe com o olhar de cambiteiro não, porque quem vê por esse cabra é os bois na cangalha. Olhe com olho vivo, olho de tijuaçu”, dizia ele que o avô lhe dizia enquanto fazia o caminho da roça.

Com a lembrança permeando a cachola, Manequinho seguiu seu destino para cumprir a tarefa daquela sexta-feira. Ia feliz, traquinando ações pós trabalho, meio a lá “happyhour” urbano. Já havia preparado o ambiente, os pesticos, a bebida, o sanfoneiro e, a morena das pernas produtoras de bandejas de palha de coqueiro trançadas. "Sextou", pensou ele, não com essa expressão popularizada pelo povo das cidades. Na roça, o termo era e ainda é “calungagem”.

O dia passou e quando a tarde deu as caras como a querer despedir-se mais cedo, Manequinho e os compadres da roça já arribaram do campo e pegaram o beco para suas casas. A noite desceu vagarosamente sobre o sertão do Seridó e as rochas aquecidas pelo sol do dia, cintilaram esbranquiçadas na negritude da noite de verão. O vento que fora convidado para a “calungagem” nem deu as caras.

As lamparinas, vistas de longe e organizadas em círculo pareciam estrelas encravadas na terra, algumas vezes escondidas pela poeira levantada do solo seco pelas “alpercatas” de couro cru calçadas pelos “cabras machos” no voleio dançarino com as moçoilas do lugar. O forró comia solto e a carne de sol assada no braseiro entocado na vala aberta na terra seca acompanhada da boa pinga de primeira cabeçada fechava a sextação da noitada.

Porém um detalhe deixava Manequinho encucado. Onde estaria Chiquinha de Abricó? Já era para ela estar no forró pé de serra. Acontecera algo de inesperado? Teria ela caído de cama? Que diabos aconteceu com Chiquinha? Essas perguntas enchiam a cabeça de Manequinho e, a cada gole da boa pinga de cabeça, as perguntas saltitavam em ritmo de fuleragem na cabeça do rapaz. Quem o via de longe, meio no contra luz, podia jurar que saía fumaça do quengo dele.

A noite avançou noite a dentro e chegou na porta da madrugada sem que ninguém ali percebesse que as horas voaram como nunca no sertão do Seridó. E Chiquinha de Abricó, a moça das coxas morenas que moldavam as bandejas de palha de coqueiro trançada não apareceu. Já não era mais sexta-feira e sim sábado. Então, Chiquinha não sextou e Manequinho dançou.

Foi aí que se armou o furdunço com a chegada de Raimundinho de Boitatá. Veio cabreiro, esgueirando pelas beiradas, se aproximando do povo com um pé atrás, sem muita conversa, cheio de monossílabos, com olhar de ave de mau agouro, e tudo mais que aquele forró pé de serra não precisava naquele momento. Raimundinho foi se chegando para perto de Manequinho, se chegando, se chegando até quase parar em cima do rapaz que não tinha cara de bons amigos depois e engolir sozinho duas garrafas de pinga de primeira cabeçada.

- Acabou o forró? – perguntou Raimundinho.

- Acabou besta... tá vendo ali o sanfoneiro, o zabumbeiro e o cara do triângulo? Eles estão só afinando os instrumentos. Tá vendo os casais agarrados? Eles estão morrendo de frio e ficam assim de um lado para o outro para espantar a friagem. Tá vendo não, seu besta? - respondeu Manequinho com cara de nenhum amigo.

- Ôxi! Cabra bruto. Só perguntei – retrucou Raimundinho

- E você, besta, tava fazendo o que que chegou agora? - questionou Manequinho engolindo um copo cheio de pinga e cuspindo um pouco para o santo no canto da mesa.

- Devia dizer não, cabra de peia. Tava brincando com Chiquinha de Abricó na casa de farinha – contou orgulhoso Raimundinho.

Foi a última coisa que ele se lembra antes de acordar no hospital da cidade com a boca faltando cinco dentes e os dois olhos cobertos por hematomas roxos que pareciam grandes óculos de sol.
"O cão só deita onde lhe enchem o bucho".

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Quando Paulo Diniz virou Civuca

(Paulo Estanislau)


...Era uma bela manhã de um lindo sábado de sol. Muito embora o tempo já se faça bem distante, sei que era sábado, pois aos domingos a cidade acordava como em dia de festa, era dia de feira e ir à feira lá em Carpina é quase uma atividade sagrada, uma verdadeira festa religiosa. Nesses dias a população não arreda o pé da cidade, ao menos, não antes de ir à feira, que é uma das maiores e melhores de Pernambuco. 

Acordamos mais cedo que de costume, mesmo sendo sábado, mas tínhamos um motivo, um forte motivo: Íamos jogar em Nazaré da Mata.  “Íamos jogar” talvez não seja a expressão mais apropriada, o melhor seria dizer que o time de futebol da Associação Cultural e Diversional da Vila da Cohab ia jogar em Nazaré da Mata. O presidente da Associação, seu Edgar, um moreno alto, forte, mais pra gordo do que pra forte, temido pelo seu vozeirão, era meu pai, e naturalmente, o meu nome foi incluído na excursão, mesmo sendo um péssimo jogador, um verdadeiro analfabeto em matéria de bola no pé. 

Justiça seja feita, não se tratava de nepotismo ou filhotismo. Confesso que não me recordo de ter ouvido essas palavras na época. Certamente o assunto não era discutido, pois se fosse, meu pai, um sindicalista socialista, jamais permitiria a inclusão do meu nome e dos meus irmãos no time, mesmo o Fernando sendo um bom goleiro e o Gerson, apesar de demonstrar qualidade no trato com a bola, ainda era muito novo e franzino  para ser incluído na relação. 

Fui um dos primeiros a chegar à praça onde pegaríamos a condução, tamanha a ansiedade nem me dei conta que o relógio nem marcara as 07:00h e o encontro era as 08:00h. Fiquei em frente à Associação. Não demorou muito, o veículo que nos levaria chegou. Um caminhão Fenemê 66. Não sei se pode se chamar aquilo de condução, pois a sua condição não era das melhores.  Muito embora a boléia deva conduzir o restante do caminhão na direção proposta pelo motorista, a carroceria parecia querer discordar dessa iniciativa. Alinhamento não existia entre elas. A Carroceria era pensa para um lado e a boléia para outro. Na verdade, não havia alinhamento de qualquer espécie naquele veículo. Ele era todo troncho.

Bom, o que importa é que ele nos levaria ao jogo.  Por falar no jogo, quero esclarecer que minha ansiedade não era por ele, pois sabia que não entraria, mesmo sendo filho do Seu Edgar, era pela oportunidade, pois era raro esse tipo de integração entre os municípios da zona da mata. Todos eram muito pobres, subsistiam do cultivo da cana de açúcar e do artesanato. Para falar a verdade, só me recordo de termos feito esse tipo de excursão em duas oportunidades além dessa. Uma para Limoeiro, município vizinho do qual saímos corridos sob uma chuva de laranja, paus e pedras e outra para Barra do Sirinhaém, onde tomamos uma goleada felomenal, mas isso é outra história.
Aos poucos os jogadores foram chegando em grupos. O primeiro, Fernando Cocó, Pedro Nabuco, Fernando Pororoca e Touro. O segundo grupo surgia pela rua N, eram Elié, Pingo, bolinha, Rubão e seu irmão Edinho, logo atrás vinham Cicí, Tapiré e Itapuacy. Por último, o grupo da família, meus irmãos Sinho e Mano e os primos Féinho e Clecinho. Não que o time estivesse completo, é que os irmãos Valter Mamute e Dinda (esse tão analfabeto em matéria de futebol quanto eu) moravam na praça e certamente só sairiam de casa quando todos já estivessem ali.  Dito e feito! Foi só seu Edgar aparecer com os uniformes que eles saíram correndo do portão. 
Por falar no uniforme, ele era de causar inveja. Não pela qualidade pois era composto de camisa de malha e calção de brim, ambos brancos, na camiseta um escudo que copiava o do Santos e sobre ele as letras S.C.D.V.C. – Sociedade Cultural e Diversional da Vila da Cohab. – Como vocês devem ter notado, meião não tinha. Cada um que levasse o seu, não importando a cor. Quem não tinha ia de meia. A causa da inveja era pela brancura. Ele já havia sido usado algumas vezes, mas o seu branco parecia clara de ovo batida com açúcar refinado. Pudera, era lavado por Dona Elífias.
--- Dona Elífias, a melhor lavadeira que conheci na vida, é também a melhor cozinheira, a melhor confeiteira de bolo, a melhor artesã de flor de goma e uma das melhores professoras de arte culinária que conheci, foi com ela que aprendi a cozinhar. Para ela, branco é branco, bege é bege, se foi feito branco assim tinha que continuar. Até hoje, ao oitenta anos, faz questão de manter seus lençóis e suas roupas, tenham eles um mês ou dez anos, brancos.
Lá vem seu Edgar, com sua barriga, avolumada pelas dobradinhas e feijoadas comidas nas madrugadas, no cais do porto de Recife onde trabalhava, escoltado por dona Elífias, a melhor mãe do mundo, que por sinal é minha mãe e, à época, também diretora da associação (lá vão pensar novamente em filhotismo).  Todos nos aproximamos do caminhão. Ele olhou, contou, conferiu e, com aquela voz delicada como pata de rinoceronte, aveludada como tromba de elefante, gritou: 

--- Vamos subir, vamos subir que o caminhão precisa sair. 
Completou, suavemente como som de alto falante de festa junina:
--- Primeiro as mulheres!  
Era costume nessas excursões levar torcida e, obviamente, era muito melhor jogar com torcida feminina. Eram aproximadamente dez, mas que faziam muito barulho. E lá fomos nós. Mal o caminhão deu partida, deu-se início à cantoria. A primeira música, acreditem, foi se a canoa não virar. Obviamente, com as alterações de praxe. Certamente não cantaríamos essa música se o acidente com o Bateau Mouche em 1989 já tivesse ocorrido. Música rolando, todos cantando, caminhão rodando, de repente alguém acha uma vara comprida, que tomava toda a carroceria do caminhão. Pelo seu tamanho deveria servir para derrubar manga, caju, oiti, coco-babão ou macaíba. Não importa que serventia tinha para o seu dono aquela vara, naquele momento, ela serviu para derrubar um cidadão de sua bicicleta.  
Estávamos, no momento do inusitado, passando por Buenos Aires, cidade localizada entre a nossa e o nosso destino, quando ela, por acidente ou malfeitoria, arremessou para o chão aquele singelo cidadão. Confesso que não vi quem deu a cipoada nas costas do pobre coitado que, provavelmente, estava indo para o trabalho, pois levava na cintura uma peixeira de 12 polegadas e no bagageiro um facão daqueles de cortar cana. Entre risadas e protestos da mulherada todos se defendiam, ninguém acusava ninguém. A vara foi imediatamente recolocada em seu lugar original, com mais rapidez e facilidade do que fora tirada. Como estava entre minha prima Cleone e minha amiga e irmã Ódila, não precisei de auto defesa.  Passei então a olhar às feições de cada um para ver se descobria o culpado. 
Não tivesse o caminhão parado, por algumas vacas que passeavam tranquilamente pela estrada, estaria até hoje acreditando que o mal feito teria vindo do meu irmão Fernando.  Sua cara e seu passado eram seus algozes.  Quando o (possível) acidentado, que se contorcia de dor, notou a parada do caminhão, levantou-se, retirou da cintura a peixeira, o facão do bagageiro e começou a correr em nossa direção. Foi uma gritaria só! Todos mandavam o motorista correr.  Mas correr com aquele caminhão era impossível.  E por que? Ainda era cedo e estávamos perto de Nazaré, questionava o motorista. 
Para abrandar a ansiedade, dos leitores é claro, as vacas foram para o brejo (no sentido literal) e o caminhão seguiu. Mas não corria, ao menos, não tanto quanto o cidadão de peixeira e facão nas mãos. A nossa ansiedade crescia. De repente, o enraivecido senhor desistiu, talvez pela dor, talvez por receio de perder sua bicicleta, o que importa é que para nosso alívio, desistiu.  Foi quando descobrimos o autor daquela façanha. 
Tapiré, o mais moreno do time, um mulato excelente imitador de Paulo Diniz, tido como corajoso, destemido, nem parecia o mesmo escondido sob aquelas tábuas que serviam de banco, branco que nem Sivuca.  Uma coisa posso garantir, minha teoria estava correta, era só olhar para o rosto de cada um que veríamos o autor do mal feito. O difícil seria encontrar Tapiré sob tantas tábuas e pernas.    

  

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Saudade... essa saudade...

(Marcus Ottoni)



Eu cresci entre o Rio de Janeiro e Minas Gerais. Fui menino jogador de pelada na “caeira” em São João del Rei e “muleque” brincando de “garrafão” em rua de terra na comunidade de Acari, na cidade maravilhosa. Fui traquino e ousado, tanto em Minas como no Rio. Arrogante como menino mimado por si mesmo e revoltado com o destino que colocou minha vida numa espécie de ping-pong, ora boa, ora nada boa. Mas cresci assim.



Cresci em meio a molecada carioca e os amigos “mineiros dos bão”. Eram grupos de meninos soltos na buraqueira e sempre atentos as novidades que naqueles tempos não eram tão tecnológicas e sim mais artesanais. Não havia ainda todo esse aparato digital para tirar nossa atenção da vida e nos emburacar num túnel isolador da sociedade e cruel porque mata o que de melhor existe no ser humano, principalmente, nas crianças: o corpo a corpo da vida com a proximidade dos sentimentos e da própria alma.



Assim, entre brincadeiras nas chuvas frias nas tardes de verão carioca, mergulhos na cachoeira do riacho na segunda ponte da rodovia entre São João e Barroso, passeios intermináveis pela estrada para Tiradentes e gazeteando aula no viaduto em Coelho Neto vizinho a Acari, fui levando minha adolescência como a vida achou por bem me levar. Tudo era tão extremamente bom... bonito e barato e gostoso de se viver.



Amigos tive muitos e tão variados que não me recordo de todos porque alguns apenas serviram de barco e não de porto seguro. Nosso código era simples e direto, sem arrudeios desnecessários e nem se imaginava o tal do politicamente correto como mordaça social para enquadrar pessoas nos requisitos da minoria que se acha oprimida e vitimizada ao longo dos anos e anos... amém. E cuja culpa não me cabe, nem antes, nem agora e nem nunca.



Não havia naquela época desrespeito ou discriminação de qualquer matiz entre todos nós. Erámos fruto da esperteza caipira mineira e da malandragem inteligente dos cariocas. Uma fusão perfeita para quem vivia naqueles tempos sem os grilhões do patrulhamento ideológico e da perseguição social das palavras, frases, expressões e gestos. Era uma beleza o entendimento mudo pelo qual absorvíamos a consciência da diversidade e a pluralidade da sociedade. 



Como era carinhoso chamar um amigo afrodescendente (termo da neosociedade) de “negão”, “crioulo”, “tição”. Pelo politicamente correto essas palavras ensejam discriminação e racismo o que, nos dias de hoje, ao utiliza-las é bem provável que se responda a um processo e, possivelmente, vá em cana por disseminar racismo e intolerância racial. O mesmo caso se aplica aos homossexuais que naquela época, sem pejorativismo, nossos amigos dessa classe eram chamados de “viadinhos”, “bicha”, “mariquinhas”. Tudo em tom de gracejo e companheirismo traduzindo o carinho e o respeito do grupo por quem invertia o prazer natural do homem macho.



Assim era naquela época quando, ainda meninos adolescentes, corríamos pelas ruas de terra em Acari fugindo das porradas do pegador no “garrafão” desenhado no chão com lama do esgoto a céu aberto que corria nos dois sentidos ao longo de todas as ruas do bairro. Erámos felizes e de tudo que o mundo nos apresentava, provávamos sem o perigo de se tornar excluídos do sistema ou de qualquer outro neologismo apodrecido nas mentes e corações falaciosos que para tudo constrói a vitimização social com interesses nem sempre confessáveis. Bons tempos que agora são apenas lembranças guardadas no fundo da memória e que um dia serão apenas histórias contadas por nossos descendentes, se delas tomarem conhecimento.



Não quero me contrapor ao avanço da sociedade e a tal modernidade dos comportamentos sociais. Afinal cada geração tem seu ideário e constrói seu legado com o que tem em mãos no tempo em que existe e atua como agente social ativo. Não posso me queixar dos dias de hoje só porque meu tempo passou e, agora, o novo tempo está em curso com novos conceitos, novas posturas e novo entendimento do comportamento da sociedade. Assim se fez no correr dos séculos e nas mudanças de gerações ao longo da existência humana. 



Demos vivas, então, a compreensão do novo tempo e das novas regras. Mas saudade, que é da gente, particular, pessoal, intransferível, não se altera com o passar dos anos e não se enquadra em novos ditames sociais, muito menos se molda por novas postura da geração que determina como devemos, agora, falar, ser e obedecer as regras ditadas por ela.



Não, saudade é imune as mudanças da ordem social e política. 


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Jorginho e seus Pares 

( Paulo Estanislau )


Jorginho reuniu em sua casa alguns amigos, os mais próximos, para comemorar o seu meio século de vida, acreditava ter alcançado o ápice, a partir de agora ela seria declinante. Por isso, queria festejar com os mais queridos. Sabe-se lá se teria uma nova oportunidade para comemorar um novo ano de vida, já que depois dos cinquenta, segundo ele, essas possibilidades vão ficando cada vez menores. 




A medida que os convidados iam chegando eram recebidos por um aniversariante nada animado, com semblante de quem estava contrariado, até enraivecido, bem diferente do seu estado normal, feliz e sempre disposto a disputar o troféu esponja, como era de se esperar.  Como amigo que é amigo não abandona o outro na tristeza, principalmente no dia aniversário, arrastaram-no para a alegria.



Futebol, mulher, cerveja, não necessariamente nessa ordem, de tudo se falava e, como era festa, de tudo se consumia, desde bolinhos de bacalhau e camarão ao alho e óleo a salsicha de cachorro quente. Até que, transcorridas algumas horas e eliminado aquele estado de espírito inicial do aniversariante, resolveram indagar-lhe o motivo daquela tristeza.



E veio a explicação, para espanto de todos, ele acabara de assistir a dois ministros da mais alta Corte brasileira, acusarem-se mutuamente de não terem moral para chamar a atenção de nenhum membro daquela casa. Sem, obviamente, darem as devidas explicações pelas sérias acusações. Graves, principalmente por ocuparem os cargos que ocupam no poder judiciário.



Reclamava indignado: 

--- Que capacidade têm para julgar processos, que podem influenciar diretamente na vida de um cidadão, se sequer têm moral para chamar atenção de alguém?  Como confiar em um Supremo Tribunal que seu presidente é desmoralizado diante de milhões de brasileiros e sua única reação é dizer que quem o desmoralizava também não tinha moral, nem  ao menos para aplicar-lhe aquele corretivo.



E a conversa se esticava. Lembrava de uma recomendação de sua mãe, quando ele ainda era menino, para escolher bem suas amizades. 



E completou:



--- Ela dizia, “quem com porco se mistura, farelo come”.



Como estamos falando de Ministros da Suprema Corte, mudemos então o texto, mantendo o sentido: “Diga-me com quem andas que ti direi quem és”. A alteração por minha conta, é claro. 

E continuava a explanação, indignado: 



--- Como pode alguém sentar-se ao lado de pessoas que não têm moral, chamá-las de meus pares e depois dizer que tem moral. Tem não! Nesse supremo são todos iguais.



Alguém, angustiado com aquela conversa, sentenciou-o:



--- E não tem mesmo! E você, que moral tem para atrapalhar a nossa festa? Vamos beber e comer que é o melhor que a gente faz!



E voltaram a falar de futebol, cerveja e mulher. 



lembrando mais uma vez, que a ordem aqui não deve ser levada em consideração. 



E a festa seguiu em frente, sem mais discussão se os ministros da nossa Suprema Corte têm moral ou não. Continuaram também a degustar, inclusive, isca de peixe, vinho, cachaça e manjubinha frita.

Parabéns e longa vida  ao Jorginho!



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Eu, minha alma... e os “cães negros”

(Marcus Ottoni)



Nos últimos meses tenho conversado muito comigo mesmo. Nesse “conversê” entre eu e eu mesmo descobri que tenho uma alma arredia, irrequieta e quase meia totalmente desprendida de apegos e afagos. É interessante como nossas conversas evoluíram do simples papo informal de antes do sono chegar para questões de profundas reflexões sobre assuntos tão diversos que, antigamente, para mim eram supérfluos e desinteressantes. 



Mas, como toda alma que se preza, preza o corpo que habita e dele faz uso sem cerimônia, a minha tem, aparentemente, total tutela sobre mim, sobre meus atos, minhas palavras, atitudes e, até mesmo sobre o meu silêncio. Silêncio,... quem diria, é tão barulhento que assusta todos nós quando se posiciona intransigente em nosso presente. Mesmo que estejamos no meio de uma multidão, ele se faz ouvir como o ronco de um trovão em meio a tempestade. Por isso, assusta e muito o silêncio nosso de todo o dia.



Alma arredia é um perigo constante. Se a isso unir-se a irrequietude, o problema se agiganta e passa a ser um pesadelo 24 horas por cada dia vivido e a viver. Some, ainda, o desprendimento de apegos e a desnecessária ilusão de afagos de todos os tipos, tamanhos, viés, espiritual e fisicamente. Tem me dito ela, minha alma, que sou seu hospedeiro incrédulo, o que me acarreta prejuízos emocionais de toda sorte. Prometi mudar.



Outra noite, antes do sono me tomar por completo, ela me chamou aos gritos implorando por um papo mais profundo, mais consciente, mais reflexivo e menos fútil como os das noites que antecederam a noite em questão. Me fez uma pergunta que demorei muito para compreender a razão de tal questionamento e, mesmo me esforçando bastante, fiquei entre a dúvida que me assaltava a alma e a certeza de responder corretamente e acalmar aquela alma insolente e desobediente. 



Nossa conversa nessa noite durou quase três voltas inteiras dos ponteiros do relógio. Um “conversê” cansativo, enfiado num oito que circulava, circulava, circulava e voltava sempre ao mesmo ponto do início. Porém, quando minha alma achou que eu iria respondê-la para estabelecer um novo ciclo de conversa, desisti. Dei-me por cansado, aborrecido, mau humorado, vencido. Adormeci.



Triste ilusão minha achar que me dando por vencido colocaria um ponto final naquele assunto tão intensamente colocado por minha alma para um debate, nem tanto intelectualizado, mas com a profundidade que uma alma rebelde gosta de pontuar quando a questão envolve tanto ela como eu. Pois bem, ela voltou a tocar no assunto quase que todas as noites que se seguiram aquela noite que deu origem ao tema.



Relutei, fingi descaso, tangenciei, fugi do debate, desconversei, enfim, fiz tudo que estava ao meu alcance para evitar retomar aquela conversa. Sem sucesso. Ela venceu e por mais três noites fui obrigado a discutir com minha alma o assunto que a atormentava e me enchia o saco. Nos transformamos em sofá e analista, mestre e discípulo, antagonistas ferrenhos, oposição e situação, direita e esquerda, protagonista e anônimo... foram noites intermináveis de um debate entre mim e minha alma arredia.



No final, nenhuma conclusão. Ou melhor, uma única alternativa de entendimento da questão colocada por minha alma para um debate comigo: colocar uma pedra (se é que se pode colocar pedra na alma) sobre aquele assunto e voltar ao bate-papo trivial e sem tanta introspecção metida na conversa. Concordamos nisso e, assim, estabeleceu-se um parâmetro para nossa relação de fraternidade interna.



Nossa convergência socializada para o assunto foi o ponto final do debate. Na verdade, chegamos ao entendimento de que há um lugar em minha alma que não deve ser visitado e nem tornado público. É escuro e esconde os “cães negros” que se criaram independente de nossa vontade, minha e de minha alma, e que dormem o sono dos esquecidos acalentados por iras e desesperos temporais.



Cresceram e lá estão. São monstros criados a revelia de nosso querer e vontade como já disse. Se despertos transformam em ira e revolta tudo ao meu redor e desconstroem sentimentos, emoções, ideais. Não se movem pela razão e sim pela sensação de indignação generalizada, cegos pelo ódio que os pariu e poderosos pela guerra eterna com a qual foram alimentados. São pedaços da alma que devem permanecer ocultos, intocáveis, adormecidos. 



Assim, tanto eu como minha alma, resolvemos “conversar abobrinhas”. Temos nos divertido intensamente com nossos debates cheios de futilidades. Até o sono chega mais rápido, vem aos poucos, devagarzinho, sorrateiramente até dar o boa noite final. Adormecemos juntos, eu e minha alma.



Quanto aos “cães negros” continuam hibernados em sono profundo num lugar oculto enquanto minha alma vive em paz. Sou solidário a ela e comungo com a oração repetida todas as noites por ela antes do sono nos nocautear: “Não despertem os “cães negros” que em mim habitam/Não tenho poder sobre eles/São incontroláveis quando despertos/Conheço suas iras/Conheço suas revoltas/ Deixai que durmam o sono da eternidade/Nos livrai de suas presenças/Hoje e sempre”.



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O dia do Sogro

(Paulo Estanislau)


O grande Stanislaw Ponte Preta propôs certa vez a criação do dia da outra. Para ser mais direto e claro àqueles que fingem não entender, afinal, tem gente que adora se fazer de besta, principalmente quando o assunto lhe deixa em uma situação delicada, a OUTRA é aquela pelas quais muitos homens rastejam, para ser mais explícito, a AMANTE.

Sem querer criar polêmica com os defensores da proposta do nosso saudoso escritor, nem com seus amigos e familiares, vejo sua sugestão desnecessária e com certa dose de preocupação. Não pelo fato de no dia destinado às mais que amigas, elas cobrarão os seus presentes, afinal, teriam e têm direito.  Desnecessária, porque elas já ganham muitos presentes, até mais que as esposas. A preocupação é pelo fato de que nos dias que antecedem o dia destinado a homenageá-las, os maridos sofrerão com as vigílias clandestinas e perseguições praticadas pelas cara-metade, pelas sogras, filhas e, até, amigas inconvenientes das fiéis cônjuges.
   
Um problema bastante preocupante é o amigo ser visto passeando no shopping comprando algum presente em qualquer loja, no dia ou na semana que antecede ao da homenagem e ser dedurado por uma araponga inconveniente. Se ela for, ou tiver algum amante, certamente não entregará nosso amigo pois também, estaria aguardando o seu presente, a custa de chantagem. Isso traria problemas para o mercado e para as famílias.

Amante, como a séculos e séculos se faz, tem que se manter escondida. Se assim não for passa a ser namorada, assim sendo, terão menos direitos e os presentes certamente serão mais escassos.

Na minha desinteressada opinião, melhor seria criar o dia do sogro. Esse não precisamos esconder. É alguém que temos que ter sempre ao nosso lado, de preferência, do nosso lado. O sogro não entrega à filha a amante do genro, e a recíproca, certamente é verdadeira. A sogra jamais ouvirá da boca do genro tamanha calúnia, difamação, deduração, deduramento, entregação, seja lá que nome se dê.

Sogro é um companheiro de mesa de bar, um irmão mais velho, por vezes um segundo pai. Sogro é um potencial aliado numa possível e, por vezes inevitável, desavença com a sogra. Essa aliança, é bom que se diga, não é por mera solidariedade masculina. É muito além disso, é por conhecimento de causa. 

Ficar a favor de um quase estranho, um desagradável frequentador de sua casa nas horas do almoço e do jantar, um, possível, raptor de sua filha, contra a própria esposa, não é nada fácil. Porém, ele conhece os motivos de sua decisão, ele tem ou teve sogra.

Não é minha intenção criticar as sogras, as que tenho, ou tive, são e foram maravilhosas, mas se elas têm o seu dia, por que não os sogros.

Por isso, nós que tivemos, temos, teremos, somos ou seremos, precisamos nos organizar numa frente pela criação do Dia do Sogro afinal, sogros unidos (aos genros) jamais serão vencidos (pelas esposas)

Até a Vitória! 


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A família Karamascovi

(Marcus Ottoni)

Era um domingo como outro qualquer de tantos que já haviam passados no sertão do Seridó potiguar. A família Karamascovi, com seus 10 membros, repetia religiosamente o ritual de todos os domingos ensolarados. Ou melhor, de sol causticante já às seis horas da manhã. A casa grande dos Karamascovi, construída na várzea, se destacava entre as outras casas da região por ser a única feita com paredes de tijolo cru e coberta com telhas de barro colorido batidas nas coxas das meninas Karamascovi, cinco no total e de idades variadas entre 19 e seis anos, por isso, nem sempre uniformes.

Na cozinha a senhora Karamascovi, uma senhora de seus 40 anos e, embora a vida no sertão seridoense a tenha marcado a sol e seca ao longo de toda sua vida, ainda mantinha os traços da beleza nordestina de uma mulher com descendência tupi/europeia perdida já há muito tempo quando os “patrícios” junto com os indígenas entreguistas e catequizados pelos padres católicos expulsaram os holandeses das terras ao sul do Equador na capitania do Rio Grande.

Ela cozinhava um guisado a moda sertaneja, coava café preto forte adoçado com açúcar mascavo, já estava pronto o cuscuz de milho e, para reforçar, batata doce cozida com casca. O cheiro do café forte invadia a casa tirando da cama os meninos e meninas mais preguiçosos e com maior densidade sonífera. O patriarca dos Karamascovi ia percorrendo os poucos cômodos da casa entoando uma canção num idioma desconhecido até mesmo de seus filhos, mas que era o hino da família cantado quando a ocasião exigia a presença de todos ao redor da velha e carcomida mesa de madeira de lei talhada no machado do patriarca. 

Dos oito filhos, cinco eram mulheres e os três restantes eram homens, ou melhor, dois. Um deles, o mais velho com 16 anos tinha seus trejeitos misturando masculinidade anatômica com docilidade feminina. Ele não sofria discriminação por parte de seus familiares, mas a vizinhança era cruel. Chamavam-no de “Karamacosvi invertido” o que pouco o incomodava. Também, por conta de sua forma de comportamento, tanto o senhor como a senhora Karamascovi o poupavam das tarefas mais árduas no cotidiano da família de criadores de gado de leite e de corte.

Independente disso, a família Karamascovi era um exemplo de união, socialismo familiar e disciplina caninamente instituída. Com todos já de pé, com os rostos lavados, cabelos escovados, roupas limpas e apetite desperto pelo aroma delicioso vindo da cozinha, sentaram-se a mesa a espera do alimento que os encheria de energia para aquele domingo de sol e calor. O patriarca sentou-se na cabeceira da mesa e a senhora Karamascovi começou a servir, um a um, o café da manhã. 

O ritual tinha início com os mais jovens indo em escala crescente até a mais velha, para enfim, chegar ao chefe da família que tudo acompanhava com olhar de sertanejo severo. Todos servidos, esperaram a senhora Karamascovi sentar-se a mesa com seu café da manhã para, então, orar pelo alimento e pelo dia que nascia, e , só depois, começarem a comer. A oração que não existia em qualquer livro religioso do conhecimento da humanidade, era exclusiva da família Karamascovi e, de acordo com o depoimento dos mais antigos, fora recebida numa sessão amadora de psicografia por um ancestral dos Karamascovi no início dos anos de 1755, tornando-se, assim, patrimônio religioso da família passando de pai para filho desde então.

Ninguém além dos Karamascovi tinha a permissão de rezar aquela oração. Quem o fizesse, estaria cometendo sacrilégio e banido para sempre do rol de amigos e conhecidos dos Karamascovi. Por isso, ao rezarem a tal oração psicografada de um ancestral, a família o fazia em tom de sussurro inteligível assemelhado com o ronronar de um felino. Mas todos rezavam afinados com o tom dado pelo patriarca e recitavam os versos da oração sem errar uma vírgula e sem cometer qualquer deslize durante o ato de rezar no café da manhã.

Há um registro de um texto que dizem ser da oração. Não se sabe quem o conseguiu e também não se pode apostar como sendo a verdadeira oração dos Karamascovi. Diz o texto da exclusiva oração dos Karamascovi: “Pai que não estais no céu e sim em nosso corpo/ manifeste teu querer em nossas vidas/faça santo quem nos é precioso/e santifique todos aqueles que nos desejam o bem/Que teu querer se estenda por todos/ e que  o reine que habitas em nosso interior seja eterno e próspero de bondade/ Nos alimente sempre com o pão da vida/ fazei tremer todos que nos ameacem/afaste de nos e do teu reino em nós/ os males dos homens/as dores do sofrer/o martírio da fome/a angustia de perder-te dentro de nós/ fazei, ó Pai que habita em nosso interior/que nossa vida seja de luz/que nossa boca seja bendita/que teu reino em nós jamais seja violado/que possamos encontrar a paz eterna em vida/Pai que não estais no céu e sim em nosso corpo/ fortalece, agora e sempre, o meu amor pelo amor/.


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O INFILTRADO

(Paulo Estanislau)


Tem certo tipo de pessoa que não serve pra ser companhia nem de moribundo em coma profundo. Assim é um amigo que nós temos, que atende pelo apelido de Lula. Lula é daqueles que quando a gente liga e pergunta como é que ele está ele responde logo.

–-- Tô de pé, mas se for dar notícia ruim diga logo que eu me sento!

Ele diz que é tão azarado que se acertar na Mega Sena vai ser num sábado, que é pra passar dois dias milionário mas  sem ver a cor do dinheiro. Só anda de cara fechada. A última vez que o vi sorrindo foi no enterro de um primo seu. Não me perguntem o motivo. Nessas horas ele sempre sorri, ou faz com que outros sorriam à custa de suas piadas.

Dia desses encontrei com esse amigo na W3 Sul e perguntei se estava tudo bem, um segundo após fechar a boca, me dei conta do erro cometido. Não era essa a pergunta a ser feita. Foi como se a crise mundial estivesse restrita apenas a ele. Após andarmos quatro quadras consegui dizer até logo. Cá pra nós, sinceramente, eu espero que não seja muito logo.

Mas não é do seu pouco senso de humor que quero falar, deixemos de lado essa sua não tão agradável característica, vamos falar da impressão causada por ele às pessoas que não fazem parte do seu cotidiano.

No dia da final da Copa do Brasil de 2008, entre Sport e Corinthians, Jorge, um amigo pernambucano e torcedor do Sport como eu, ligou convidando para assistirmos o jogo em um restaurante do SIA, o Jardins D’Itália do nosso amigo Gilson, que embora São-paulino cede o espaço para a torcida do Sport em Brasília assistir os jogos do Leão. Como já havia preparado umas costelinhas de porco e posto algumas cervejas no freezer o convidei para assistirmos lá em casa.

Explicou-me que já havia chamado umas quinze pessoas e combinado naquele bar. Era muita boca para as minhas costelas, para as cervejas nem se fala. Resolvi então ir ao encontro deles. Seria uma ótima ideia ver o jogo junto com amigos (atenção para o tempo do primeiro verbo). Nunca gostei muito de assistir jogos de futebol em bares, pois tem sempre torcedores dos dois times e, às vezes, uns bem inconvenientes.

Por falar em torcedor inconveniente, assim que cheguei me deparei com um vestido numa camisa do Sport, o Lula. Juro que pensei em dar meia volta e assistir ao jogo em casa, comendo a minhas costelinhas e tomando aquela cervejinha gelada que estava me esperando. Não dava mais, já haviam me avistado, além disso, minha filha, que me acompanhava, vendo a animação protestou por nossa permanência naquele local.

Rapidamente cumprimentei a todos, pois o jogo estava pra começar, e sentamos nos únicos lugares disponíveis, ao lado do nosso amigo Lula. Não quero ser pessimista nem maldoso, mas parece que, intencionalmente, deixaram aquelas cadeiras vazias pensando em mim, tanto que não tardou muito para o nosso amigo mostrar sua contrariedade. Seu primeiro testemunho de insatisfação foi só ver a escalação do Sport, aí ele esbravejou:

–-- Pronto, agora ferrou, com esse time vai perder!

Tentei, não sei por que cargas d’água, contestar dizendo que fora com aquele time que o Sport chegara à final.

Ele rebateu!

--– É, mas com esse time já perdeu o primeiro jogo por 3 a 1 em São Paulo.

Naquele momento não dava pra discutir. O jogo começara e logo no primeiro lance do Sport, Leandro Machado chuta fraco, o goleiro do Corinthians defende e o Lula completa:

–-- Com um centroavante que não sabe chutar como é que quer ganhar. Ganha não! – Ganha nada!

Na mesa ao lado todos olharam e, ao mesmo tempo, como que ensaiados em uníssono gritaram:

--- Lula, cala a boca e assiste o jogo!

A cada ataque perdido pelo time do Sport era mais um comentário emitido por aquele crítico inconveniente, sempre balançando a cabeça negativamente e dizendo:

–-- Ganha não! Ganha nada!

Foi então, naqueles momentos de perigo, em que todos fazem silêncio, estejam no estádio, em casa ou no bar que se ouviu um comentário vindo da mesa dos torcedores adversários:

— Esse Lula é um infiltrado. Ele deve ser corintiano!

Todos na mesa sorrimos, menos o referido. Quase fui obrigado a concordar muito embora o conhecesse de muitos carnavais, nada sintetizava tanto seu comportamento quanto aquela expressão, “infiltrado”, mas ele não era. Minha filha Paula, de apenas doze anos, ouviu e perguntou-me o que significava aquela palavra. Naquele momento a única coisa que me veio à cabeça foi dizer:

–-- É você estar entre pessoas fingindo ser amigo e não ser, é você estar em um lugar, colocado pelos amigos e estar trabalhando para adversários deles...

Antes que eu completasse a explicação ela me fez a seguinte pergunta:

–-- Então pai, o Lula é traíra?

Não dava pra dizer que era. Também não dava pra dizer que não sem uma explicação mais detalhada daquelas duas palavras. O Sport estava ganhando o jogo, valia o título da Copa do Brasil e o Corinthians pressionava por um gol.
Prometi pra minha filha que depois que o jogo acabasse eu explicaria.

O jogo terminou, o Sport ganhou e fomos comemorar, inclusive aquele torcedor inconveniente. Esqueci de dar as devidas explicações prometidas à minha filha . Imagino que até hoje os torcedores adversários acreditam que o Lula era um infiltrado.

Minha filha o imagina traíra.

--- E vocês?

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Há uma menina embaixo dos papelões

(Marcus Ottoni)


Ninguém havia notado a pequena menina escondida sob papelões no beco ao sul da rua das autoridades constituídas. Nem mesmo os garis que passaram pelo local coletando o lixo dos afortunados, mais interessados no conteúdo dos pacotes bem amarrados com fitas amarelas contrastando com a negritude dos sacos de bons plásticos descartável. Ninguém mesmo, nem mesmo eu que, atento sempre aos detalhes das ruas, me apercebi de que embaixo daqueles papeis sujos, estava uma menina limpa dos horrores do mundo.



As horas se passavam marcadas tartarugando pelo grande relógio da imponente catedral erguida sobre pedras polidas colocadas, milimetricamente, uma sob a outra para crescer céu a fora como se fosse a escadaria por onde o Divino desce para proteger seus bens aventurados cheios de opulência e prepotência. Lentamente o tempo ia comendo o dia pelas beiradas deixando no ar a sensação de paralisia social e de impotência naquele local abastado e coberto pela aura da impunidade que privilegia aqueles cujo vil metal supera a consciência humana. 



Lá, pequena e humilde, solitária e maltrapilha, escondida e faminta, a pequena menina assistia o passar dos pés sem que alguém notasse sua presença. Não ousava falar, não ousava se mexer, não ousava viver. Apenas seus olhos iam e viam seguindo as pegadas de sapatos reluzentes, botas de couro, plataformas douradas, mocassins importados e tênis de marca. Sua mente, inocentemente, seguia seu olhar por debaixo daqueles papeis mau cheirosos que a cobria. Pensava ela na sua vã filosofia de menina abandonada que, um dia, bem lá no futuro, ela também teria pés bonitos ornamentados por sapatos caros.



Pessoas iam e viam em todos os sentidos sem, entretanto, sentir o grito mudo daqueles pequenos olhos azuis esverdeados. Era dor, era fome, era desespero, era agonia. Tudo num único olhar, num único sofrer. Um sofrer enorme para um ser tão pequeno. Mas era e continuaria assim por horas e horas. 



O frio da madrugada deu lugar ao calor de um sol que brilhava ostentando o amarelo ouro que reluzia nos braços, pescoços, adereços e sorrisos dos protegidos do Divino que transitavam pelo local. A felicidade era geral e a alegria própria dos ricos, cheia de hipocrisia e falácias taciturnas, mas viva o suficiente para aquele teatro dos horrores encenado por um cem número de mortos-vivos cuja esperança era ver, a cada dia, sua riqueza extrapolar a casa do permitido e romper os grilhões da legalidade ampliando o poder, falso poder, daquele que crer poder tudo e tudo poder apenas porque seu querer assim o quer.



Lá, oculta das armadilhas da soberba, a pequena menina de olhos azuis esverdeados imaginava em seu delírio de fome que tudo aquilo, também, lhe seria permitido pelo Divino quando mais velha fosse e soubesse se portar no ambiente que agora descortinava com sonhos pueris da inocência de quem, ainda, não provara as maldades do ser humano e as agruras da vida sem a proteção do Divino, por mais piedoso, caridoso, solidário e bondoso que O pintassem os padres, pastores e todos os religiosos que se sentam sobre o vil metal para enumerar os pecados dos mortais culpando-os pela miséria e infortúnios da existência humana.



E o dia se foi com todo seu esplendor da ostentação e a noite deu boa noite ao privilegiado lugar dos afortunados e abastados protegidos, agora e sempre, pelo Divino. A escuridão da noite, com fios de luz cortando o negro e clareando espaços pequenos, não conseguiu esconder os olhos azuis esverdeados, agora agoniados pela fome e sem o brilho da inocência perdida entre os papelões sujos e mau cheirosos. Era o olhar da dor mais que doída, do sofrer mais que sofrido, da angustia angustiada pelo abandono e pela solidão, gigante em corpo tão pequeno. Chorou silenciosamente. Apenas molhou as meninas de seus olhos com lágrimas salgadas de horror e penar.




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O DESASTRE

(Paulo Estanislau)



Na hora de sempre lá estava ele esperando em frente ao ministério por sua esposa. Desta vez ela não estava com a aparência muito tranquila como de costume, feliz por mais um dia de trabalho cumprido, parecia nervosa e com um certo ar de irritação. Ele a olhou e ela entendendo seu olhar foi direta:

-¬-¬-¬- Hoje o meu dia foi terrível!

Entrou no carro reclamando.

O dia dele, pela expressão de cansaço, certamente não havia sido dos melhores também. Resolveram então, de comum acordo como sempre o faziam, eliminar o stress em um quiosque que tem um excelente churrasco de picanha e uma deliciosa cerveja gelada lá no Cruzeiro Novo. Dizem as más línguas, que de picanha aquela carne só tem o preço e a aparência. Sejamos sinceros, quando se vai a um lugar desses não é pelo tira-gosto, o que importa é tudo mais que o acompanha: O ambiente, a bebida e, principalmente, a companhia.

Chegando ao local, notaram que o ambiente estava um pouco carregado, não era o mesmo de sempre, com pessoas alegres em animadas discussões, ao contrário via-se caras amarradas. Poucos conversavam, ninguém discutia, alguns de olhos vermelhos como se houvessem chorado. Em todas as mesas ocupadas havia ao menos uma pessoa com cara de poucos amigos. Diante daquela situação, o comentário de Fernando de tão evidente parecia desnecessário:

¬-¬-¬- Tem algo errado por aqui, está todo mundo triste, deve ter acontecido algo muito grave.

Antes que a Lúcia fizesse qualquer comentário avistaram os sobrinhos Filipe e Ana, sentados, degustando uma cerveja bem gelada. Assim como os demais, a aparência também não era das melhores, o que de certa forma contraria a natureza de ambos, um jovem e feliz casal.
Foram ao encontro deles, ao aproximarem-se notaram que os olhos da sobrinha estavam vermelhos, havia chorado. Preocupados, perguntaram o que estava acontecendo, mais por preocupação com ela que por curiosidade com a situação do ambiente. Ela, não entendendo o motivo do questionamento, olhou o tio nos olhos e respondeu com um certo ar de irritação:

¬-¬-¬- Vai dizer que você não sabe?! Você deve estar feliz com o que aconteceu.

Fernando ouviu aquela resposta irritada com um certo alívio, não era problema de saúde na família o motivo daqueles olhos vermelhos. Logo ele, um tio extremamente preocupado com os parentes e eles, os sobrinhos, sabiam disso. O problema era outro, mas qual? Aquela resposta de certa forma aguçou sua curiosidade, mas, diante do estado de espírito de sua sobrinha, valeria a pena perguntar? A curiosidade falou mais alto e ele arriscou.

¬-¬-¬- Sinceramente não sei. Estou notando que o clima está pesado, todos aqui estão tristes, você, aparentemente, andou chorando e isso me preocupa, por isso perguntei o que está acontecendo.
Ela, demonstrando um péssimo estado de humor, disparou!

--- Tio, você quer me convencer que hoje não leu jornal, não ouviu rádio, não 
viu televisão nem abriu um computador?

Realmente ele não havia feito nada daquilo, os problemas daquele dia não lhe permitiram. Por isso precisava desopilar, o que, aparentemente, estava ficando difícil naquele quiosque.

Filipe sempre gentil e carinhoso, assim como a Ana, diga-se de passagem, tentou amenizar a situação puxando uma cadeira para a tia sentar e lhe serviu um copo de cerveja. Fernando também sentou, chamou o garçom, pediu mais uma e mais um copo e, respondeu:

¬-¬-¬- Não, sinceramente não sei o que aconteceu ou está acontecendo!

Já acomodados e com os copos abastecidos, o sobrinho Filipe (sobrinho por parte de sobrinha) interviu no que ele acreditava virar uma discussão, dizendo:

¬-¬-¬- Tio, ontem o Flamengo perdeu o campeonato carioca e...

Antes que pudesse completar seu raciocínio, a tia Lúcia uma flamenguista enrustida, delicadamente interrompe dizendo:

¬-¬-¬- Mas o Flamengo ganhou os últimos campeonatos do Rio de Janeiro, além de ter sido campeão brasileiro de 2009.

Filipe completa:

-¬-¬- Não é só isso, tiraram de vez a taça de bolinhas do mengão, hoje o Sport Recife foi declarado pelo Supremo Campeão Brasileiro de 1987, e sozinho, sem dividir o título com o flamengo.

Fernando, do alto de sua ingenuidade, sem qualquer maldade no coração, disse:

¬-¬-¬- A CBF já havia declarado o Sport campeão em 1988 e isso já faz vinte e dois anos.

¬-¬-¬- É, mas o clube dos 13 dizia que o campeão era o Flamengo, emendou o Filipe.

O Tio, procurando confortar os sobrinhos, dizia que o Flamengo é que vinha criando nos torcedores a ilusão de que eles teriam sido campeões de 87 e que, nem a CBF, nem o Clube dos 13 tinham nada com essa história.

¬-¬-¬- É tio, pode até ser, mas agora o Hexa se foi!

E a Ana, flamenguista doente, como ela mesma se declara, voltou a chorar. Chorava copiosamente e resmungava:

--- Isso é pior que um desastre,´ um desastre! 

O tio Fernando, Rubro-Negro sadio, torcedor do Sport Recife, se conteve para não deixar transparecer toda sua felicidade pela notícia recebida. Sua preocupação era que sua alegria parecesse gozação pela derrota do time dos sobrinhos. Certamente não era pelo choro da sobrinha, por ter perdido na mesma semana o campeonato carioca e o brasileiro de 1987, isso em pleno 2010, era por não ter que ouvir, pelo menos por um bom tempo, que o Flamengo era hexa. 

O título do Campeonato Brasileiro de 1987 estava, definitivamente, onde sempre esteve, no SPORT CLUB DO RECIFE.


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A longa noite negra que se aproxima

(Marcus Ottoni)

Uma negra noite se aproxima do país. Será longa, muito longa e fará com que o tempo do hoje se reflita no tempo do ontem em busca do tempo do amanhã. Haverá, sim, um grande rio vermelho correndo pelos asfaltos país a fora e tingindo nossa história de um rubro envergonhado fruto de ira entre irmãos de nacionalidade.

Será uma noite sem fim por tempos corridos entre dor e medo, angustia e incerteza, morte e ressureição. Será, não sei bem como terá seu início e se esse início será o prenuncio de um tempo onde não mais se verá a liberdade e somente prevalecerá a força bruta com domínio sobre aqueles que se debaterão e, por ela e pela insanidade inconsequente de poucos, muitos perecerão sem saber por que e como.

Essa que se aproxima em passos comedidos e silenciosos, romperá a aurora ocultando o sol das manhãs e fará do dia o eterno inferno dos homens sobre a terra prometida com leite e mel. Não tenho certeza das certezas que produzirão a noite negra que se abaterá sobre todos nós. Não sei se terá rotulo ou ismos caracterizados. Apenas sei que na escuridão dessa noite terrível o cheiro de cadáveres insepultos penetrará em todos os lares e roubará, das famílias, inocentes que se darão ao fim como ratos seguindo o flautista de Hamelin.

Será longa, disso tempo certeza. Também tenho certeza que seu fim revelará o derradeiro desespero de milhões de pessoas. Não sei de qual lado o choro infinito se processará como cantilena de réquiem e qual o tamanho da cicatriz que cortará a carne, cuja cura se dará após décadas de sofrer e penar. O dia, nesse dia, quando a noite se dissipar, não terá sol brilhando e também não haverá jardins com flores perfumando a vida. Será, isso sei bem, nublado e empoeirado, triste e sombrio, doentio e moribundo todos os dias que se seguirão ao dia do fim da noite negra.

Mulheres, homens, jovens, idosos, todos serão martirizados e humilhados pela noite negra que se aproxima. Serão todos, sem discriminação ideológica, de classe social, raça, gênero ou grau de instrução. Ninguém ficará fora do alcance da negra noite e cada um e todos estarão de um lado ou do outro confrontando-se como animais enfurecidos pela ira de alguns que longe estarão num claro dia de verão europeu.

Qual será, então, a razão para que essa nuvem negra se encaminhe para o país? Será a revolta oculta dos Abbadon? Dos Kasyade? Das Kesabel? Ou de todos eles investidos em um poderoso exército da ira incontida em décadas de escuridão profana? Não tenho a resposta. Mas posso imaginar o terror, o caos, a destruição, o martírio de um povo refém de interesses que não dele, mas obrigado a submeter-se aos caprichos hediondos de uma negra e longa noite.

Quisera eu não ter que escrever sobre isso. Quisera dissertar sobre assuntos menos perversos, mais adocicados, hilários talvez. Não me assusta a proximidade da negra noite que se encaminha para nosso país. Não, não me assusta como não me assustou, tempos atrás, uma outra escuridão longa e autoritária.


Meu querido amigo, talvez a longa noite negra nos coloque em polos opostos. Não sei o futuro que nos aguarda. Nem o meu, muito menos o teu. Sei do nosso passado e do nosso presente. Seja qual fim tenha essa negra noite, só te peço que sobreviva.

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Nadismo, filosofia dos inúteis

(Paulo Estanislau)



Tem daqueles dias em que você está disposto a não fazer nada. Ficar em casa sem se mexer. Daqueles propício à prática do nadismo. Mesmo que seja na sala de casa, sem som, sem TV, apenas deitado no tapete, no chão ou sofá, olhando para o teto.  Sem que isso vire costume é óbvio!

Quero deixar claro que nada tenho contra os adeptos desse modismo dos preguiçosos. Tanto que resolvi praticá-lo.

Como estava doente sem poder trabalhar, certamente não seria criticado por aproveitar a pseudofilosofia dos que não gostam de praticar trabalho. Para minha sorte moro em uma casa com um bom quintal e ali seria o lugar ideal, deitado na grama, olhando o céu e tomando um frio.  Em Brasília, mês de maio, oito horas da manhã, você quer o quê? Tomar sol? Nem que fosse aquela cerveja que um publicitário inteligentemente pegou emprestado o nome do astro rei. Com o frio que faz no mês de maio, nem ela.

Preparei-me. Fiz um café bem quentinho, peguei uma velha cadeira de praia e fui para o quintal, sentei-me e comecei a saborear aquele maravilhoso produto nacional que, depois de Airton Senna, a seleção brasileira de futebol e Guga, foi responsável pela elevação do nome do Brasil mundo afora. Nesse caso não importando a ordem.

Como a disposição era de não fazer nada, comecei a viajar em pensamentos. Não sei aonde fui, nem quanto tempo demorei, mas sonhei, ou melhor, pensei.  Na verdade tanto faz, sonho e pensamento são irmãos monozigóticos mesmo.

Depois de tanto pensar deduzi que não fazer nada não quer dizer exatamente não fazer nada. Não que para isso precise-se de um QI elevado. Você pode não fazer nada pensando.

E de tanto pensar acabei por deduzir, como posso não fazer nada se estou pensando.  Se tomarmos como base Platão, ou mesmo Karl Max, não podemos dizer que pensar é não fazer nada.

Vinícius de Moraes perdia horas em um banho de banheira pensando e compondo, e nós é que ganhávamos!  O Artista Diplomata costumava dizer:

--- Nada me predispõe melhor para pensar, instalo à minha volta o telefone, minha tábua de escrever, os cigarros, às vezes um gim tônica bem gelado, e me deixo horas lendo, rabiscando ou simplesmente fazendo nada...

O que causa espanto é que de repente a mídia, de uma forma geral, abre suas portas para um indivíduo divulgar a criação de uma prática, que ele chama de filosofia, o nadismo.
Segundo seus pseudocriadores, nadismo é utilizar o tempo para pensar em qualquer bobeira, menos ser criativo. O que transforma os sequazes desta pseudofilosofia em inúteis.

Pensando bem, o nadismo, na forma como a sugerida por  seus jovens criadores não é coisa recente, apareceu a milhares de anos. Não se sabe ao certo se dele originou-se a preguiça ou ela que o originou. Certamente uma está intrinsecamente ligada ao outro. Ambos são farinha do mesmo saco. Não é o caso do vagabundismo, esse foi criado após os dois primeiros, é, portanto, apenas uma desvirtuação de ambos.

Uma coisa tenho que reconhecer, se tem aqui algum não inteligente (para não dizer burro), esse sou eu, que me propus a não fazer nada e parei o que estava fazendo para escrever uma tese que não vai ter espaço nem na mídia, nem em bancas universitárias. Convenhamos, o cara realmente é perspicaz. Muito embora a mídia adore dar espaço ao que não presta, vide as telenovelas, cantores e músicas insistentemente divulgadas nas rádios e televisões brasileiras, dar espaço para um indivíduo divulgar uma pseudofilosofia de preguiçoso, é de uma extrema falta de bom senso.  Aí já é demais!.

Isso é coisa de quem não tem o que fazer.
Tchau!  Vou parar e começar a fazer nada.

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"Nem taca lá, nem taca cá..."

(Marcus Ottoni)

A ideia era com uma tacada só resolver dois problemas de uma vez e costurar sua ascensão política naquele início de período eleitoral com as campanhas para vereador e prefeito dando o pontapé inicial na temporada da “caça ao eleitor”, onde tudo vale e vale, inclusive, jogar sujo para ficar bem na fita dos políticos abastados, useiros e vezeiros das contribuições por debaixo do pano que engordam muito as contas bancárias de “lideranças sem nenhum caráter” e quase sempre não rendem os votos prometidos.

Na noite passada, estivera até altas horas na reunião para organizar a visita do candidato a prefeito e de um “mauricinho da Zona Sul” candidato a vereador, ambos do Partido da Promessa (PP). Ele ouvira atentamente as orientações e ficara encarregado de coordenar a “ala moça” cujo tom maior era um roxo avermelhado com característica de “mula empacada”, composto por gurias de boa anatomia, disposição para segurar qualquer onda e comandadas pela matreira “Zilá Pinga Quente”, uma lésbica com quase 100 quilos, 45 anos, e com mania de “paquita”.

Ele jurara que aquela função, embora ficasse ao lado de tantas beldades vestidas com malha de academia super-hiper-extra colada nos corpos, fora um castigo para afastá-lo do candidato mauricinho, filho de um rico empresário do ramo de boi de corte, com quem ele queria proximidade e intimidade financeira. Além disso, ter como “pareia” uma lésbica peso pesado fantasiada de “menina do show da Xuxa” era fatura para pagar todos os pecados e ficar com crédito junto ao Divino para mais de cem novos desvios de conduta espiritual.

Por isso, decidira, tão logo acordara e mesmo antes de aboletar-se na mesa para encarar um cuscuz com ovo e mortadela e café preto forte coado no pano de cozinha, organizar sua estratégia.  Sua mente matutava a tacada que ia dar e como ia resolver dois problemas de uma só vez. Seus pensamentos iam e viam em espirais de maquiaveslimo suburbano nordestino e lhe garantiam que tudo iria dar certo se seguisse à risca o plano que a “cachola em pé de guerra” elaborou.

Assim fez. Vestiu sua roupa de campanha eleitoral do Partido da Promessa e partiu rumo ao campo de batalha com a ilusão de ser um astuto estrategista. Logo avistou seu grupo roxo avermelhado com aquele “dragão de Madagascar” piruletando e rebolando em frente as beldades prontas para o abate logo após o “engana eleitor” terminasse na comunidade e a comitiva dos “graduados do PP” se recolhesse na casa do doutor Ariosvaldo Barrafunda, homem de grande saber ilícito com doutorado e especialização na Primeira Universidade Contemporânea (PUCa).

Lá, sabia ele, que sua presença não seria bem-vinda e tudo acabaria na porta da mansão onde todo jejum acaba e o “reinado do cão” se instala. E foi dada a largada. Carros embandeirados, buzinas a toda potência, som quebrando todas as leis do silêncio, homens, mulheres, crianças, idosos, deficientes físicos, gays, travestis, lésbicas, maconheiros, prostitutas, comerciantes, donas de casa, bêbados com seus litros de Pitú a tira colo, poeira, gritos e papeis coloridos, rojões e mais rojões, girandolas a cada 10 minutos e ele com seu grupo tipo abre alas daquela encenação do próprio inferno em dias de carnaval.

Meia hora depois e tudo continuava do mesmo jeito. Apenas as ruas, as casas, as pessoas nas calçadas eram diferentes. O cortejo do prefeito e do “mauricinho candidato” seguia com risos estampados nos rostos, acenos longos e constantes e suor caindo com força testa abaixo. E lá ia ele com suas meninas degustáveis de roxo-avermelhado e com a paquidérmica “Zilá Pinga Quente” sassaricando que nem cobra em placa de zinco ao sol de meio dia. Precisava agir conforme havia planejado urgentemente. O percurso estava chegando ao fim e, dali a poucos minutos, tudo, tudo ia se acabar na porta da mansão do doutor Ariosvaldo Barrafunda.

E foi no que deu. Fim de festa. O povo se dispersando, os graduados do PP se juntando para entrar na mansão, o líder comunitário todo sorriso ao lado do “mauricinho candidato”, um pau mandado do candidato a prefeito distribuindo cachaça e pipoca “bokus” para o povo, “Zila Pinga Quente” se declarando para uma senhora evangélica, as meninas comestíveis se organizando para a segunda etapa do trabalho da campanha eleitoral e ele ali, apatetado pela sua impotência em colocar em prática o plano que com uma tacada só resolveria dois problemas de uma única vez.

“Nem taca lá, nem taca cá”, disse “Zila Pinga Quente” ao passar por ele. 

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O apagador de páginas

(Paulo Estanislau)



“Ler é desvendar mundos desconhecidos”. “A leitura nos transforma em pessoas cheias de imaginação e nos convida a um mundo repleto de criatividade”. “A leitura é como a música da imaginação, que nos faz percorrer os caminhos da sabedoria”. “A leitura de um bom livro é um diálogo incessante: o livro fala e a alma responde”.

Essas são algumas das frases que encontramos por aí como forma de propaganda para a leitura, e estão todas corretíssimas. O nosso extraordinário escritor Carlos Drummond de Andrade costumava falar, “A leitura é uma fonte inesgotável de prazer, mas por incrível que pareça, a quase totalidade, não sente esta sede.

Talvez, e apenas talvez, o nosso Drummond não tenha avaliado a falta de sede pela dificuldade que algumas pessoas têm em manusear o livro, tendo que voltar parágrafos e até mesmo páginas para descobrir onde interrompeu a leitura.

Uma coisa que faço, mas que muito me incomoda, é dobrar as pontas das páginas quando as termino de ler, uma a uma, atitude que acaba por enfear o livro, isso porque toda vez que as marco com aquela tirinha de papel, na maioria das vezes ou a deixo cair, ou alguém inadvertidamente a retira.  Além do mais, quase sempre não passam de propaganda que em nada tem haver com literatura.

Um dia desses, lendo Fernando Sabino e suas invenções, “sem tirar patente” e, sem querer plagiá-lo, senti a necessidade de exercitar a minha capacidade inventiva. Diferentemente do grande escritor e inventor mineiro, se conseguir criar algo de tanto valor para a sociedade como as suas invenções, com toda certeza patentearei.

Pensando nisso, principalmente na preservação desse nobre instrumento de cultura, foi que resolvi inventar uma máquina que apagasse as páginas lidas, mas que as armazenassem em um buffer, para que depois de lido todo o livro, elas fossem devidamente repostas. Evitaria assim, dois inconvenientes de uma só vez, as dobraduras que enfeiam os livros e as releituras para descobrir onde paramos.

Já comprei até um scanner desses de mão para estudá-lo melhor. Espero que nenhum inventor mais experiente tenha se antecipado e patenteado essa minha criação.

Ao menos a ideia já está formulada.
 

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Roberval e Crisantena

(Marcus Ottoni)

Mal o dia nasceu e Roberval deu início ao seu plano para conquistar Crisantena. Ele havia passado toda a noite elaborando um jeito de, enfim, arrebatar o coração da moçoila que lhe despertava desejos e emoções muito mais que a flor da pele poderia expressar. Seu plano, pensava ele, era infalível e não teria outro fim que não fosse o deleite do amor profano que nutria pela Crisantena.

Assim, e decidido a dar a cartada final naquela angustia sem fim que já durava mais de dois meses, pulou da cama, enfiou-se no banheiro, raspou os pouco pêlos do rosto, entrou no chuveiro e deixou que a água escorresse por um bom tempo pelo corpo enquanto sua mente repassava cada detalhe do plano para conquistar sua platônica amada.

Banhado, meteu-se numa calça jeans surrada, ajeitou-se numa camisa de manga amarela desbotada, calçou uma meia de ginástica marrom com detalhes em branco e jogou os pés no velho tênis das peladas de futsal. Olhou-se no espelho, fez algumas caretas, umas engraçadas e outras tentando parecer sério, besuntou o cabelo desalinhado com brilhantina de camelô e se viu pronto e acabado para a empreitada que ia começar tão logo colocasse o pé fora de casa.

Nem mesmo café tomou. Bebeu apenas um copo de água morna com bicarbonato de sódio (sua falecida mãe dizia que era bom para todos os males) e ganhou a rua com a cabeça nas nuvens e os pés em direção a casa de Crisantena. Um sorriso abestalhado desenhou-se em sua boca e para todos com quem cruzava em sua trajetória, balançava a cabeça como uma lagartixa feliz. Feliz ele estava e continuaria assim para o resto da vida ao lado de sua amada tão logo seu plano de conquista entrasse em cena.

Da casa dele até a casa de Crisantena eram algo em torno de dois quilômetros. Que fossem 20, 30, 40... para ele não importava a distância, caminharia o dia todo se preciso fosse para encontrar sua doce e platônica amada e derrubar sobre ela todo o discurso elaborado durante a noite, passado e repassado ene vezes e memorizado como arquivo de computador.

Enquanto caminhava Roberval ia relembrando o início de sua apaixonada loucura por Crisantena desde o dia em que a vira pela primeira vez. Ela chegara em Portão da Coisas, cidade pequena no interior nordestino, há três meses. Ninguém sabia nada sobre ela, mas isso não importava, nem para Roberval e muito menos para a população de Portão das Coisas. Ela se instalara numa casa de médio porte e abrira um negócio de “meia porta” na galeria mais frequentada pelo povo da cidade, na verdade a única existente.

Crisantena era de meia idade, avantajada na beleza feminina cuidada diariamente com cremes e loções que a faziam exalar um delicioso aroma de frescura no ar. Seus cabelos negros desciam cabeça à baixo tocando as pontas em suas protuberantes nádegas que salientemente cadenciavam um molejo alucinante quando se deslocava de um lugar para outro. Fartura anatômica era coisa pouca para ela. Tudo nela ela exageradamente bem torneado em formas, entrâncias e saliências pecadoras.

Pela cabeça de Roberval as formas de Crisantena bailavam em pensamentos de pecados explícitos e revoavam suas vontades em voos rasantes pelo espírito encabrestado que o dominava sem pudor e alheio a qualquer moral religiosa que o pudesse condenar. Ele sentia o sangue ferver quando a distância entre ele e a casa de Crisantena ia encurtando-se. Era o fogo de “cabra macho”, conservador e avesso as modernidades dos tempos de hoje que, para ele, era o “desmantelo do cão”.

Pouco a pouco Roberval via a singela casa no final da rua ganhar proporção de realidade. Enfim, lá estava ele, fervendo de desejos e louco de vontades. Pigarreou, assoprou a palma da mão e levou-a ao nariz para conferir o hálito de menta com propólis, sorriu amareladamente para si mesmo e toc toc toc... bateu na porta de madeira envernizada.

Três minutos que lhe pareceram um século até a porta se abrir e um rosto masculino surgir na fresta que se abriu entre a porta e o portal. Que susto! Quem era essa "cabra de peia" na casa de Crisantena aquela hora da manhã? Perguntas que se entalaram na garganta de Roberval até que o rapaz, com uma voz aveludada perguntou o que ele queria. Aquela voz... tão assim... tão parecida com a de Crisantena... 

Roberval perguntou por sua platônica amada e recebeu como respostas que ela dormia ainda... Perguntou, com voz de autoridade de “coroné do sertão” quem era o rapaz e recebeu como resposta um largo sorriso e uma piscada de olhos, além de um “desculpa, vou entrar”. E a porta se fechou, o rapaz sumiu, Crisantena não apareceu e Roberval ficou estatualizado, remoendo sua incompreensão do acontecido.


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O Noivo atrasado

(Paulo Estanislau)


O dia do casamento é sempre um dia especial, de festa, contentamento, de muita comemoração. Para quase todo mundo é assim. Salvo para aqueles que casam por determinação dos homens de toga ou, solicitação de remanescentes coronéis de fazenda. Pra esses, é relaxar e casar, se der, aproveitar. Se o enlace for nosso, tem-se que adicionar aos ingredientes citados no começo um pouco de nervosismo e uma certa pitada de preocupação. Nada que atrapalhe a realização do fato e nos faça passar mal em pleno púlpito ou na hora do ato.

Assim é para qualquer pessoa, seja homem ou mulher.

Na verdade, tem gente que não sente o menor pingo de nervosismo. Preocupação, nem com a hora do enlace matrimonial, assim, é o meu amigo e irmão Carlos. Noiva chegar atrasada já faz parte do ritual, não tenho informação de alguma que não o tenha feito. Da mesma forma que não tenho qualquer notícia de algum noivo que tenha chegado atrasado, muito menos uma hora, exceto os meus amigos Carlos e, mais recentemente o Rummenigge, mas essa é outra história.

No caso do Carlos, a culpa não foi exclusivamente dele, isso não. Essa responsabilidade tem que ser dividida por quatro. Eu, assumo a minha parcela de culpa pelo atraso. Acontece que, muito embora morassem quase todos na mesma casa, menos eu, pois já era casado, não tivemos tempo de comemorar sua despedida de solteiro, por razões de trabalho, o jeito foi fazê-lo no dia do casamento.

Meu irmão Fernando era comissário da Transbrasil, vivia voando. O Gerson, outro irmão, era policial civil, trabalhava em expediente normal. Eu, bancário, trabalhava de meia noite às oito da manhã e o Carlos, também bancário, trabalhava na compensação noturna até meia noite. O que fazer senão comemorar sua despedida de solteiro no dia de seu enlace, já que todos estaríamos de folga. Foi o que fizemos.

Era dia de folga para todos, previamente agendadas e o enlace matrimonial seria apenas às dezessete horas, então acordamos cedo e nos preparamos. Short, tênis, camiseta e óculos escuros. devidamente paramentados fomos ao Parque da Cidade. O destino, Pesque-Pague, O lugar ideal, dia claro, sol a pino, cerveja gelada, peixe frito e mulheres bonitas pra se olhar, querer mais o que para uma despedida de solteiro. Agora era só esperar o relógio marcar dez horas e começaríamos os trabalhos, como dizia meu velho pai Edgar. Seria apenas trinta minutos de espera. Tomaríamos um pouco de sol e, na hora certa, as cervejas. O que não podíamos era infringir normas e conceitos passados por nossos antecessores, desde muito jovens lá pelas bandas do nordeste. Beber antes das dez é coisa pra alcoólatra.

Hora chegada. Garçom chamado. Alguém pediu:

— Desce a primeira cerveja.

A cerveja desceu e desceu como se fosse água. O sol estava quente, o jeito era pedir logo outra. Pediu-se outra e a primeira porção. Não podíamos ficar bêbados, tínhamos que comer, aquele seria nosso café da manhã e nosso almoço. Pedimos outra, conversamos, olhamos as que mereciam, as que não mereciam também. Afinal, segundo Lavoisier: — Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma. As que não merecem hoje podem ser as desejadas amanhã, e vice-versa. Visse?

Pedimos outra e outra porção.  Não me recordo se foi nessa ou foi na próxima que pedimos outra porção. Também não faz diferença, Pedimos a porção e outra é claro! E depois outra, a outra não se esquece nunca. A cerveja!

Dezessete horas, alguém lembrou que tínhamos um casamento pra ir, dos quatro dois eram padrinhos e um era o noivo nesse casamento. Resolvemos encerrar os trabalhos. Pedimos a saideira e a conta. Bebemos e fomos nos arrumar, os quatro em um apartamento que só tinha um banheiro. Chegamos à igreja às dezoito horas, quarenta e cinco minutos após a noiva, Todos de cara lavada. Lavada de água e cerveja. Não necessariamente nessa ordem.
A cara da noiva só não estava lavada em lágrimas por ela ter certeza que o noivo iria, mas não estava de muitos amigos não.

No outro dia, antes de viajarem em lua de mel, Carlos resolveu comprar lembranças para levar aos parentes que iria encontrar no Recife, destino escolhido para aquela famosa e feliz comemoração particular.  Resolveu ir à feira da torre, quando chegou ao carro notou que todos os presentes ganhos na noite anterior estavam dentro, pelo menos a maioria.  Mesmo alertado pela esposa dos riscos de andar com eles e, com preguiça de subir para guardá-los, resolveu ir à feira com as lembranças ali mesmo, acreditando que ninguém mexeria.

Foi, comprou as lembranças e quando voltou ao veículo notou que o dono do alheio os havia levado, todos. Perdeu os presentes, no primeiro dia após os enlace matrimonial.

Ele ficou a ouvir a celebre frase:
Eu não disse! Eu não disse!
E logo no primeiro dia de casado ouvir aquela frase era sinal de que ela jamais seria esquecida. 


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De amigo...

(Marcus Ottoni)



Falar sobre amigos e amizades é uma das coisas mais prazerosas da vida. Quem tem amigo é um “cabra sortudo”. Não importa a quantidade de amigos que você tem, ou que a vida colocou em sua trajetória. Muitos, apenas, como travessia. Outros, como destino, porto seguro, braço solidário, companheiro de lutas de qualquer matiz, ideológica ou não, ou de causas que unem e não mais separam pessoas pelo resto da existência.



O que importa em um amigo é a qualidade da amizade, a força da amizade, a profundidade com que se impõe uma amizade, o elo que prende e transforma e que qualifica a amizade como eterna, duradoura, consistente e desprendida de qualquer outro interesse que não seja ser amigo, de corpo presente ou ausente da vista. Amigo é a representação existencial do útero materno, nossa primeira zona de conforto, mesmo com o desconforto que causamos nos nove meses em que permanecemos encolhidos e acolhidos pela genitora geradora de vida.



Amigo não precisa de rótulo, classificação social, identificação pessoal. Amigo é único em gênero, número e grau. Não tem cor ou raça definida, não é ateu, católico, cristão, umbandista, budista, maoísta, ou qualquer outro “ista” sufixando uma corrente religiosa ou uma tendência ideológica. Amigo não é rico, pobre, empresário, operário, patrão, empregado, gari, garimpeiro, honesto ou “tramieiro”. Amigo não tem sexo, é assexuado por condição “sine qua non” da própria amizade. Amigo é plural, universal, atemporal.



Amigo quando se tem é a pura essência da verdade explicita da vida pela qual passamos colhendo amigos, colecionando momentos que, por vezes, tem tempo definido e ficam na memória como agradável passagem. Mas os que ficam para sempre e se tornam imprescindíveis em nossa existência são os mais importantes e os melhores amigos que se pode ter e chamar de amigo. 



Amigo não é irmão de sangue, não é construção genética similar, não é filho do mesmo pai e da mesma mãe. Amigo é consequência da busca pela zona de conforto que perdemos quando saímos do útero e nos deparamos com a solidão dos mortais desprotegidos dos perigos da vida, enfrentando os monstros que nós mesmo criamos para justificar a busca por um amigo que nos ajude a combater o bom combate da alma e estabelecer a estrada por onde vamos caminhar irmanados no melhor e o único sentimento de um ser humano que jamais morrerá em nosso interior: a solidariedade.



Amigo é cumplice até nos desentendimentos, nas rusgas passageiras, nos altos e baixos da amizade, na imatura arrogância da certeza incerta que move a prepotência pessoal que o mundo nos incuba para fingirmos que somos fortes e aguentamos as porradas da vida sozinhos, inutilmente indefesos aos perigos das armadilhas que o destino nos prepara ao longo de nossa jornada pelo planeta terra. 



Amigo é foda! Não abre mão da amizade mesmo que se sinta magoado ou ferido por palavras e egoísmos pontuais que dificultam o diálogo e o entendimento do momento. Sai ferido do embate, mas volta sutil como um mastodonte reclamando a amizade abalada e arremata os pontos descosidos com nos de vínculo costurado no silêncio misterioso da amizade inquebrantável. Amigo é tampa! Não desiste nunca de uma amizade.



Amigo é amigo e ponto. 



Hoje, um grande amigo, daqueles que a gente guarda no fundo do peito, do lado esquerdo como diz a canção de “Bituca”, deixa para trás mais um ano de vida e inicia um novo ciclo em sua existência. Fico feliz por tê-lo como amigo há mais de 40 anos, dos quais muitos nos fizeram estar longe dos olhos, mas sempre perto do coração. Um grande camarada, um irmão de estrada, um guerreiro da vida, um amigo sincero, leal e solidário. 



Então, como hoje é 9 de outubro de 2019, quero render minha homenagem ao amigo Paulo Estanislau pela sua existência e por me deixar compartilhar de sua amizade. Parabéns amigo, vida longa ao “Duque de Maracajaú”, ao artista, poeta, escritor, ser humano, homem de luz, guerreiro da liberdade e arquiteto de amizades solidárias.



Feliz Aniversário, camarada.



PS: Pouchart aproveita para mandar lembranças e os parabéns.




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A culpa é do garçom


(Paulo Estanislau)




Outro dia recebi um e-mail de um velho camarada de militância, indignado com um outro condiscípulo também talhado nas pelejas sociais e estudantis e o achei tão interessante que resolvi repassá-lo a vocês, grandes amigos.



Leiam com atenção!



Camarada Paulinho, esses dias precisei da ajuda de alguns antigos camaradas e não obtive. O que mais me entristeceu foi a resposta do Camarada Marquinhos. Estou lhe mandando o e-mail enviado a ele e a respectiva resposta para sua avaliação. 



Eis o email:



--- Grande Camarada “Cauê”,  quanto tempo não nos falamos nem nos vemos. Há muito tencionava lhe escrever, mas só esses dias consegui seu endereço eletrônico com a Leca, lembra dela? Coisa maravilhosa essa tal de internet! Pode soar estranho a minha aparição repentina, mas é que estou precisando muito da sua ajuda. Há dias acordo com um mau pressentimento. Uma coisa me diz que algo de ruim está por vir. Hoje levantei, olhei pela janela e vi pessoas que eu jamais havia reparado passar em frente de minha casa. Talvez seja paranoia. Sei não! 



Fui preparar o café das crianças me sentindo angustiado sem saber por que. Para amenizar aquela sensação, liguei o televisor, baixinho, para que aqueles estranhos não soubessem que eu estava em casa e fui assistir ao telejornal. Quando acabou o primeiro, mudei de canal e assisti a outro, foi aí que a minha aflição aumentou. Corri para o computador e nenhuma informação. Agora já é pavor o que estou sentindo. Nenhuma palavra sobre os ATOS SECRETOS DO SENADO, aqueles do desvio de recursos do Senado Federal. Em nenhum dos telejornais. Isso é sinal de que eles estão chegando perto. A polícia sempre foi assim, quando está próximo de descobrir um crime fica calada para não assustar o bandido. 



Vai ver que a polícia do Congresso é igual. 



Vão chegar a mim. Eu sabia que não devia ter aceitado aquele emprego de garçom, logo em um restaurante tão bem frequentado, só gente de bem. Hoje em dia garçom é uma profissão muito visada, mais do que mordomo. Conhece muita gente boa, e ruim também, deputados, senadores, diretores de secretaria, de departamento, pessoal do judiciário mas bandidos também bandidos. 


Garçom é uma profissão muito perigosa. Mas lhe garanto que não sei de nada. Eu juro que a última vez que eu estive no Congresso foi no dia da cassação do Collor. Será que os homens do governo estão com raiva por eu ter apoiado o fora Collor e agora vão vir atrás de mim. Afinal, eles estão todos juntos, Lula, Dilma, Jader Barbalho, Romero Jucá, José Múcio, Aloísio Mercadante, Fernando Bezerra, Ideli, até o Fernando Collor. São todos do mesmo governo. 



Será que o horror vai recomeçar? Será que eles vão entrar no meu barraco gritando, chutando mulher e crianças, como faziam na época da ditadura? Não, isso só pode ser paranóia, a polícia do Congresso não é assim não. Será? Confesso que estou com um pouco de medo. Já não sou mais aquele jovem destemido da década de 70. Vou mandar a mulher e as crianças para a casa dos pais e desaparecer por uns tempos. Estou precisando ficar em algum lugar em que ninguém me conheça.



Liguei para o Gilson, que está em Campo Grande, expliquei a situação, ele desconversou, disse que ia fazer uma viagem de barco pelo amazonas com a namorada. Acho que é pelo velho cachimbo da paz. Não está querendo chamar mais atenção para si. 



Passei um e-mail para Leca, aquela antiga companheira do Cruzeiro, ela disse que não pode me ajudar, está de companheiro novo, ele é militar e muito ciumento, não iria entender a minha estadia em sua casa.  Foi ela quem sugeriu que eu lhe escrevesse. Prometo que é só por uns dias, até eles descobrirem quem ordenou ou quem assinou os ATOS SECRETOS DO SENADO. 



Aguardo resposta urgentemente. 

Um abraço do velho camarada Esquisito.



OBS: “Estou escrevendo com os antigos nomes de guerra para o caso do e-mail ser interceptado.” ---



--- Sabe o que ele me respondeu? – 



--- Pode vir, venha logo. Vou lhe preparar uma festa. Chamarei os meus amigos da imprensa e alguns do PT. 



--- Vôte!  Isso lá é amigo. Eu queria só me esconder por um tempo.


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A saga de Mariazinha

(Marcus Ottoni)



O vento leste que soprara durante toda a noite amenizando o calor na caatinga havia cessado. O chão trincado pela longa estiagem no sertão nordestino parecia respiradouros do inferno por onde o calor invadia o ar tornando o mormaço insuportável para qualquer ser humano naquela manhã. Mariazinha, nua estava e continuaria assim por causa do calor e porque não havia ninguém ao redor de uns tantos quilômetros que pudesse envergonhar sua nudez e colocar seu pudor em alerta. 



O cabelo longo, besuntado de óleo de coco, parecia derreter na “moleira do quengo” e colar na pele daquela costa morena jambo maduro. Ela não queria admitir, mas começava a ficar “agoniada” com aquela situação e não encontrava outra alternativa a não ser ir até a cacimba d´água e deitar nela para amenizar o fogo que fazia seu corpo arder e a enlouquecia quase  deixando-a de “juízo mole”. 



“Vestir-se prá quê?”, perguntou-se silenciosamente. Nua estava e nua iria até a cacimba banhar-se para derrotar o calor e aquele fogo que a consumida. “Guerra é guerra”, disse para si mesma completando o pensamento enquanto levantava-se da sombra da algarobeira. “Pra fogo apagar, só água pra se banhar”. Pegou o surrado vestido de chita que servira de esteira e caminhou até o poço de água salobra a pouco mais de 100 metros de onde estava.



Caminhou sem pressa, arrastando o vestido pelo chão duro de um sertão castigado pela estiagem de anos seguidos. Cada passo desenhava uma pintura imaginária num caminhar de menina-moça morena com ares de rainha da caatinga, mas sem reinado, sem Rei, sem súditos. Quem a visse assim, bailando suavemente com suas formas naquele ambiente causticante, mórbido talvez, acreditaria estar vendo uma miragem como as que se avista nos desertos quando o juízo confunde realidade com ilusão. Era o caminhar de uma beleza sutil, delicada, sensual e divina.



Um parêntese para descrever a cena.



“Por onde a vista alcançava, a visão era desoladora. O ar quente saindo da terra criava silhuetas fantasmagóricas bailando sob o sol escaldante de uma manhã de calor infernal. O solo rachado como tabuleiro de pé-de-moleque com fendas diferenciadas entre as cascas de terra seca, era composto ainda pelas carcaças de animais desossadas pelo carcará sanguinolento que pega, mata e come. Nada se parece com o verde da natureza nobre e toda tonalidade era barro acinzentado meio vermelho desbotado. Apenas uma depressão no terreno sinalizava algo diferente naquela paisagem avassaladora. E, em meio aquele reino “catinguento” espreitado pelo periscópio do “filho do cão”, ia, leve e faceira, doce e sensual, nua e pegando fogo, Mariazinha com seu andar fagueiro arrastando o surrado vestido de chita pelo chão como a querer deixar rastro para ser seguida”. Ponto.



Quanto mais se aproximava da cacimba, mais Mariazinha sentia calor e um fogo desesperador a queimar-lhe as entranhas, tostando a pele e fazendo seu corpo nu ser uma corredeira de suor da cabeça aos pés. Mas continuava faceira, suave e com o pensamento no prazer que teria ao jogar-se no poço de água salobra permitindo que o líquido precioso do sertão nordestino a possuísse por completo e inteiramente como bem achasse melhor. Sorriu ao ver o brilho do sol refletido na água que surgia aos poucos descobrindo a depressão do terreno.



Quando Mariazinha, com toda sua beleza de morena jambo maduro e sua sutileza “doceleite” de menina-moça desceu o pequeno barranco para chegar na cacimba, assustou-se com o que viu. Cobriu sua nudez com o vestido surrado de chita barata, todo empoeirado, e olhou o homem nu que estava dentro da água no poço da cacimba. Por um momento pensou em sair dali e correr para o pé de algaroba onde estavam suas coisas. Mas algo a prendia no chão e ela não conseguiu sair do lugar. Apenas examinava o homem com a curiosidade da mulher cujo cérebro começa a desenhar peraltices desavergonhadas.



O homem como estava, ficou. Apenas olhou para Mariazinha e voltou a sua posição inicial. Mariazinha foi se aproximando devagar, analisando todo o ambiente. Cobria a parte da frente de seu corpo com o vestido. Chegou até perto do homem que continuava deitado dentro d´água, olhou-o curiosamente, examinando o que podia ver por não estar coberto pela água meia barrenta e arriscou iniciar uma conversa. 



- Oi, quem é você? Tá aqui há quanto tempo? Essa cacimba é sua?



O homem sem se mexer respondeu.



- É minha não. Tô de passagem. Indo pra Belém do Brejo do Cruz. E tú, quem é e faz o que por essas bandas?



- Sou Mariazinha e fugi de casa pra encontrar minha cara metade, meu príncipe. Tô indo pra capital.



- Encontrar príncipe? Existe isso não, mulher. Deixa de besteira e vem se refrescar. Cabe você aqui. 



Ainda cobrindo o corpo com o vestido, Mariazinha olhou diretamente para o homem, pensou, pensou... O calor e aquele fogo queimando-a por inteiro eram os motivos que a levaram até ali e jogar-se dentro daquela água barrenta ao lado de um homem que não sabia quem era, de onde vinha e que estava totalmente nu. Ela se aproximou da beira da cacimba, agachou-se e, olhando na cara do homem. disparou.



- Quem é você?



- Sou “Toinho Conselheiro”, um caboclo sonhador das brenhas do Catolé. Se "achegue" pro banho.



Mariazinha jogou o vestido no chão, passou por cima do homem deitado na água, foi agachando-se até enfiar-se por completo na água ao lado de “Toinho Conselheiro” e por lá ficar até que se consumisse o fogo que a queimava e o calor que “endoidava” seu juízo.



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 Feijoada, buchada de bode e urubu

(Paulo Estanislau)




Hoje acordei cedo e assistindo ao telejornal vi que é dia de urubu voar, logo me recordei do dia em que fui convidado para almoçar na casa de um grande amigo, o Arruda, esse não é famoso, esse é honesto. O cardápio era leve, como deve ser para um dia de domingo. Feijoada e buchada de bode, regadas a cerveja bem gelada. Esse amigo, um pernambucano nascido no Paraná, decente, militar do Exército que conheceu o estado nordestino por motivo de transferência, não por vontade própria, e por ele se apaixonou. Não só por ele, também por uma morena bonita de nome Joanice, com quem casou e com quem divide, até hoje, mais de trinta anos depois, os momentos bons e os consertáveis.

Sempre acham estranho quando cito algum pernambucano nascido em outro estado ou em outro país. Quero deixar claro que defendo e defenderei sempre a tese de que pernambucano é quem assume Pernambuco como seu estado. O mineiro nasce em Minas Gerais, o paulista nasce em São Paulo e o carioca no Rio de Janeiro. Isso é convenção. O Pernambucano nasce em qualquer lugar, independentemente do convencionado em suas certidões.

Conheço algumas outras pessoas que assumiram a naturalidade pernambucana, sem que lá tenha nascido, além do Arruda. Uns famosos como Miguel Arraes, Areano Suassuna, Clararice Lispector, outros, tão importantes quanto, porém menos famosos, como meu amigo Fábio Santa Cruz, minhas sobrinhas, Cacá, Ana,  Silvana, Andréia, Dani, Gilane, Geane, Girley, Rosana e Elisa, além da minha filha Paula, entre muitos. A Paula, em suas reclamações por não ter nascido no estado diz sempre que seus filhos nascerão na terra dos altos coqueiros.

Voltemos ao almoço! 


Entre um pouco de feijoada, uma cerveja gelada, um pouco de buchada de bode e outra cerveja gelada, e por vezes entre uma e outra uma lapada de cachaça, em sigilo para evitar reclamação das donas das pensões. Paralelamente, conversávamos sobre crise econômica, governo, desgoverno e as indecentes programações da televisão brasileira. Discutíamos a necessidade de haver um certo controle no que deveria ser exibido na TV. Não confundam com censura. Concordamos que muita coisa não deveria ir ao ar, mas daí haver controle autorizando a volta dos velhos censores da época da ditadura eu discordava. 


Para minha sorte, interrompemos o debate, pois estava começando o jogo entre Sport Recife e Flamengo, direto da ilha do Retiro e transmitido para todo o Brasil por uma grande emissora de televisão.


Assistimos ao jogo e, quando ele acabou, por tudo que se viu, passei a dar razão ao meu amigo Arruda. Não sei a quem ou a que órgão cabe avaliar a possibilidade ou conveniência da divulgação de cenas e programas, em determinados horários na televisão. Não sei se ao Ministério da Justiça, à Polícia Federal, ou ao Ministério da Defesa. Porém, neste final de semana, quem quer que seja responsável, falhou. Não que eu esteja aqui defendendo a volta da censura, faço questão de deixar bem claro. Só acho, assim como o Arruda, que deve haver mais responsabilidade e um certo controle na exibição de programas, principalmente nos horários em que crianças podem estar em frente aos aparelhos. 


Imagine seu filho, um garoto ingênuo e cheio de sonhos, que acredita que um urubu serve de alguma forma para alguma coisa na natureza, vendo as cenas divulgadas. Mesmo não tendo qualquer serventia, um urubu não pode ser tão maltratado, machucado, estraçalhado à vista de crianças e pessoas idosas com alguma cardiopatia.

Isso não pode mesmo!

Mas foi isso o que se viu no Recife, naquele domingo, 7 de junho de 2009, transmitido para todo o país, curiosamente, por uma emissora de televisão que defende e protege urubus. Um leão pisou, machucou, estraçalhou e, por fim, comeu em frente a milhões de brasileiros, de crianças a idosos, um urubu.  Alguns disseram que era urubu rei, outros, urubu imperador. Só se sabe que, independente do seu grau de realeza, um urubu foi comido. 


Não se sabe ao certo qual a intenção da emissora na divulgação de cenas tão horripilantes. Quem sabe, acreditasse que um mísero urubu comeria um leão, por este estar ferido, teria sofrido bicadas de um galo dias antes. Ledo engano! É sabido que esta emissora, não só tem predileção pelo animal que se alimenta de carniça, como, desde 1987, tem verdadeira ojeriza a leão. Mas daí, acreditar que no habitat leonino um urubu lograria qualquer êxito é muita ilusão. 


Nunca pensei comer feijoada e buchada de bode, vendo um urubu ser estraçalhado. 


Foi isso que vimos.  Mas, foi bom! 

Foi muito bom o almoço na casa dos amigos Arruda e Joanice.

 




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Mariazinha se foi...

(Marcus Ottoni)



Ninguém podia imaginar que Mariazinha havia decidido abandonar a caatinga, sua família e todos os anos passados naquela seca que parecia não ter mais fim. Os poucos parentes que ela tinha rodeavam seus pais tentando consola-los pela fuga da filha querida e dedicada que de uma hora pra outra deu na “birola” de sumir do mapa. A casa humilde de barro batido coberta por folhas de coqueiros trançadas parecia, naquele momento, um “banker” de tristeza explicita de todos que entravam e saiam depois de conhecer os detalhes da fuga inesperada da menina moça mulher.



Na verdade, não havia muitos detalhes sobre a fuga de Mariazinha. A ultima lembrança daquela senhora já na casa dos 50 com aparência de 80 pelas rugas cravadas na pele ressecada pelo sol nosso de todos os dias e a dura atividade na lavoura, brigando com a terra rachada para tentar ver nascer um pé de planta ou um xique-xique que o valha. Ela lembrava, e contava soluçando para os presentes, o beijo noturno que a filha lhe dera antes dela sumir engolida pela velha rede de algodão corroída pelo tempo de uso e por sonos e sonhos de chuva torrencial e matas verdejantes.



O pai, já alquebrado pelos anos encurvado nos desígnios do sertão nordestino e os mais de 31 mil dias no sol como castigo divino imposto pela vida miserável na qual foi encarnado e pela qual deverá entrar no reino do Senhor tão logo acabe seu tormento terrestre como dizia o padre de batina surrada que ordenhava as ovelhas do Divino naquelas bandas. Ele não dizia um “ai” sobre o assunto, sobre a fuga da filha que crescera sob seu olhar taciturno e rude como é, e sempre há de ser, o nordestino do sertão das caatingas.



A romaria na casa do casal foi o dia inteiro, impedindo, inclusive, que se almoçasse o “cumê” de sempre: um alagado com poucos caroços de feijão preto, farinha grossa e carne seca passada no fogo de lenha. Os mais próximos do casal até se atreveram a lembra que a hora da boia estava passando e que era preciso “forrar o bucho” para não sofrer algum mal posterior advindo da abstinência alimentar propositadamente ocasionada pela solidariedade curiosa dos vizinhos para saber sobre a fuga de Mariazinha.



Já a tardinha, quando o sol deu adeus a terra batida e seca anunciando a escuridão da noite, foi que cessou a visitação. Pai e mãe de Mariazinha puderam, então, aconchegarem-se num tamborete no oitão da casa e, abraçados como a muito não se via, deixaram a noite caminhar horas à fora levando para longe as lembranças da filha fugida e a incompreensão martirizadora da fuga que lhes garantia uma enorme e indecifrável interrogação.



Ali, juntinhos como casal novo de namorados, pai e mãe de Mariazinha nada falavam. Olhavam o firmamento em total cumplicidade silenciosa. Onde andará Mariazinha? Por que Mariazinha foi embora? O que nós fizemos para Mariazinha abandonar a gente? Alguém a roubou de nós? Mariazinha fugiu com um homem? As perguntas dançavam na mente dos dois e nenhuma resposta, por mais que as alternativas fossem sucedendo-se a velocidade da luz, era aceitável ou justificava a fuga de Mariazinha.



Mais de 20 quilômetros daquela casa humilde de taipa e telhado de palha de coqueiro trançada, Mariazinha, deitada nua sob o velho vestido de chita, olhava o céu e experimentava uma brisa morna tocando-lhe o corpo e fazendo seus mamilos ficarem duros como ponta de espinho de mandacaru. Aquela liberdade carregava junto um sonho de menina moça querendo a todo custo se tornar mulher nas mãos, entre outras coisas, do seu príncipe encantado ou sua cara metade. Fechou os olhos e apertou os lábios suspirando algo que nem mesmo ela soube o que murmurara.



Embora um vento leve soprasse do leste invadindo timidamente a caatinga, não havia porque Mariazinha sair da posição em que estava. Por mais de uma hora ficou deitada olhando as estrelas e sonhando, sonhando, sonhando acordada com o que mais queria na vida naquele instante. Depois, como criança travessa, mudou de posição e deitada de bruços amparada pelos cotovelos dobrados com as mãos segurando o rosto, encarou a escuridão e descobriu com suas meninas dos olhos acessas o horizonte rabiscando sutilmente o limite do céu na terra. 



Encantou-se com o que viu. E viu o que queria...


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Avaliação precipitada

(A cantada II)
(Paulo Estanislau)


Hora do almoço, como de costume, eles, os três mosqueteiros, como eram conhecidos lá na banco onde trabalhamos por mais de dezoito anos, resolveram ir ao shopping almoçar. O shopping ficava próximo e lá a frequência era mais bonita, se é que vocês me entendem.
A denominação três mosqueteiros tinha justo motivo: Chegavam e saiam sempre juntos. Inseparáveis amigos! Se um não pudesse sair, os outros dois, em solidariedade, não saíam. Certa feita um adoeceu, os outros dois faltaram para cuidar do enfermo. Amizade rara hoje em dia.
Voltando ao almoço!
Quando dirigiam-se ao restaurante, avistaram duas belas mulheres, braços dados a admirar vitrines. Um, achando estranho aquele singelo gesto de amizade, comentou:
--- Será que são namoradas?
Seu comentário foi imediatamente contestado pelos outros dois.

--- Não, não pode ser, são muito bonitas.

Ao cruzarem com aqueles dois diamantes maravilhosamente lapidados, Ricardo, dirigindo-se àquela que enquadrava-se mais para seu perfil, soltou a mais imbecil das cantadas:
--- Nossa! Você é maravilhosa! É o tipo de mulher que todo homem sonha ter.

O mais triste da cantada está no verbo, nesse caso soa como sinônimo de obter, possuir, o que, consequentemente, a transforma em um verdadeiro e enorme desastre. Ela, certamente chateada com aquela frase, porém, com toda elegância possível, mais do que necessário para o caso, ignorando a parte imbecil da cantada agradeceu retribuindo o elogio:
--- Obrigada, você também é uma pessoa interessante, mas não é bem o tipo que me atrai, com quem eu me envolveria.

E continuaram a olhar as vitrines. Ele, machista, temendo ficar em má situação diante dos colegas por ter sido rejeitado, antes que elas desaparecessem no shopping, soltou o seguinte tijolo:
---É uma pena eu não ser mulher para ter uma chance com você.

Ela, mais uma vez elegantemente, virou-se, olhou para aquele galanteador e respondeu:

--- Não seria necessário, bastaria não ser casado com minha amiga e colega de trabalho Carlinha.

Ela o conhecia e ele não recordava. Não sei por que, mas tenho a impressão que para o nosso amigo o terremoto do Haiti, o tsunami do Japão e a avalanche do Rio de Janeiro não foram catástrofes tão grandes assim.
Quanto ao tijolo que o nosso amigo soltou, não soltou, jogou para cima, e não era tijolo, era um paralelepípedo daqueles que compõem o meio fio das ruas. O mosqueteiro galanteador ficou ali parado esperando que ele fosse real e caísse sobre sua cabeça assim todos os seus problemas estariam resolvidos.
Quanto aos dois outros mosqueteiros, afastaram-se dando gargalhadas, e tão altas que chamavam a atenção de todos que passeavam no shopping, piorando mais ainda a situação daquele desafortunado.
Pela elegância que a jovem tratou a situação, certamente não iria comentar a sua colega Carlinha. Talvez essa tenha sido a primeira vez que o preconceito do Ricardo o tenha colocado em uma posição desastrosa. Torço para que tenha sido a última.


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A escuridão da noite

(Marcus Ottoni)



Ele viu o céu escurecer tomando o dia como um monstro faminto devorando sua presa e jogando sobre a cidade a escuridão que oculta segredos e angústias. Não viu o sol se por no horizonte oeste por sobre casas e arvores porque estava voltado para o leste. Mas sentiu quando o calor morno da tarde de verão foi deixando suas costas lentamente, descendo nuca abaixo até não mais tocar seu corpo.



As meninas dos olhos abriram-se mais que puderam para adaptarem-se ao novo cenário que abocanhou a cidade inteira e fez do que antes eram linhas definidas e cores vivas, silhuetas acinzentadas em mais de 50 tons de negro num “ton sur ton” inigualável. Tentou fixar o olhar num ponto qualquer daquele horizonte escuro, mas desistiu porque nada se identificava naquele momento, principalmente quando a escuridão engoliu por completo a luz.



Sua mente correu léguas de onde estava e aportou em um lugar familiar para onde sempre ia quando algo ou alguma coisa o incomodava. Naquele instante a escuridão o incomodava demais. Chegava mesmo a lhe assustar por estar onde estava e sentir o que sentia quando nada conseguia enxergar, a não ser seu próprio temor de não saber, realmente, onde estava.



Com o corpo na escuridão e a mente na imensidão da claridade da luz, pode, por momentos, deliciar-se com a liberdade que usufruía no lugar onde a mente repousava e se divertia com as imagens, sons e cores que seu íntimo produzia num sem fim de infinitas possibilidades de risos e felicidade explícita. Era ali, onde sua mente estava, que ele desejava permanecer para todo o sempre e sempre.



Mas o frio da escuridão o trouxe de volta a realidade acinzentada do lugar onde permanecia preso pelo corpo e por razões que ele mesmo desconhecia. Mas lá estava, cravado no chão de cimento poroso, agarrado a seus joelhos e abraçando aquela angústia que ria dele toda vez que sua mente o trazia de volta para a negritude da noite e a solidão da imensidão urbana.



Decidiu então não mais pensar em nada, nem mesmo pensar em pensar em coisa alguma. Que sua mente vagasse pelos recantos da alma e dela trouxesse, ou não, qualquer alento para seu coração que batia em descompasso com sua estranha excitação noturna. Estaria entrando em um processo de abdução egocêntrica de forma a cooptar seus pensamentos como fazem os carrascos ao serem anunciados como algozes de bruxas e feiticeiros? Ou seria a friagem da noite e a negritude do tempo que o estariam fazendo caraminholar ideias absurdas e aterrorizantes?



Não sabia. Também, pouco queria saber o que o movia para um labirinto de dúvidas e incertezas. Para ele, sentar onde estava e olhar o nada na escuridão já era suficiente para se sentir menos vivo, ou melhor, vivo-morto. Sem pensar em nada e com essa única certeza no coração, se dispôs a seguir sua sina de humano perdido em tirocínios abobajados e sem nenhuma coerência mental.



A noite seguiu seu curso tornando, a cada hora, mais escuro tudo o que tocava com seu véu de viúva negra. O corpo se arqueou por sobre as pernas dobradas e abraçadas pelos braços que entrelaçavam os dedos das mãos como cadeados de carne prendendo correntes de peles e pêlos. Os olhos, encostados nos joelhos, não se abriam. Cerrados estavam, cerrados iam permanecer. A boca, seca como areia quente de deserto, não salivava e não se abria. Nada identificava vida naquele amontoado de ossos, carnes, órgãos e emoções. A vida estava, segundo ele imaginava, num lugar onde havia a vida eterna.



A gota de orvalho que caiu sobre sua cabeça, rolou pela face misturando-se ao rio de lágrimas que corria franco pelo rosto, pingando silenciosamente gotas de solidão no chão frio de concreto acinzentado. 





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Vingança à prestação


(Paulo Estanislau)






---Todo homem é um potencial corno, não importa a mulher que tenha, pode ser feia e gorda ou um verdadeiro manequim. 


Ouvir aquilo sem ao menos ter tomado o primeiro gole, mal tendo acabado de sentar, me impressionou, pareceu uma coisa muito séria. De pronto reagi indignado questionando meu amigo Renato.


--- Pô, peraí, nem todas as mulheres são iguais, reagi indignado.


Possivelmente estava legislando em causa própria. Pensei em algumas das mulheres que fazem parte da minha vida, minha mãe, minhas irmãs, minhas sogras, minha esposa, minhas ex, dentre outras tantas, dignas e sérias que conheço e antes que respondesse, fui pegando a garrafa e abastecendo meu copo, aquela explicação, certamente, iria demorar.
Após alguns minutos de reflexão, ele começou. 

--- Veja bem, eu não estou dizendo que todo homem é um corno em potencial, longe de mim pensar uma coisa dessa. ---

Tentou explicar!
 

Quis logo saber o motivo de tanta angústia. Certamente havia descoberto que sua namorada o estava traindo. Mas como perguntar uma coisa dessas sem causar constrangimento. Como tínhamos um certo grau de intimidade, resolvi então questioná-lo:

--- O que foi, descobriu que entrou pro seleto clube dos homens traídos?

--- Não é isso não, fosse comigo eu não estaria tão chateado assim. Dava o fora e partia pra outra. A namorada do meu irmão, ela descobriu que ele a traía e resolveu dar o troco. 

Explicou!
 

Sinceramente não entendi aquele estado de preocupação do Renato. O seu irmão em questão de relacionamento é uma das pessoas mais irresponsáveis que conheço. Já cantou namoradas de alguns amigos mais chegados. Não perdoou a própria sogra.

Além do mais, vive dizendo que mulher bonita é bom para os outros. Ele gosta de namorar mulher gorda e feia, porque ninguém vai querer traí-lo. Um caráter bastante questionável.

Tentei amenizar o seu desconforto, dizendo:

--- Peraí, você sabe muito bem que ele merece, então não tem que ficar chateado!

Aparentemente, não logrei qualquer êxito. Ele me explicou que ela, para vingar-se, prometeu traí-lo todo dia ou ao menos sempre que pudesse pois, segundo a sua própria cunhada, vingança boa é vingança a prestação. A fim de encerrar aquele assunto, pois não é o tipo de conversa que me agrade, tentei aconselhá-lo:

--- Se isto está lhe incomodando, fala pra sua cunhada que você tem conhecimento do seu comportamento e que ela deveria terminar o namoro com o seu irmão.

Aí foi que entendi o motivo de tanta tristeza e angústia do Renato quando me falou:

--- Terminar o namoro com ele, ela até termina. E completou:

--- Não quer terminar é comigo. Sempre que tento, ameaça me entregar.  


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Mariazinha...

(Marcus Ottoni)

Quando o sol desceu do céu e se escondeu por trás da grande serra de rocha calcária, Mariazinha decidiu botar o pé na estrada e correr mundo em busca da sua cara metade, estivesse ela onde estivesse e fosse ela quem fosse. Assim, determinada, arrumou suas coisas num saco de açúcar amarelado, deu um nó, jogou sua “mala” por sobre o ombro e pegou o beco. 


Na verdade, Mariazinha não tinha muita coisa. Duas mudas de roupa que se traduziam em vestidos bem usados de chita barata, uma alpercata de couro cru, três peças íntimas sem o complemento da parte de cima, uma escova de dente, uma escova de cabelo meio deteriorada, um pente de osso, dois lenços de cabelo e uma bíblia pequena rodeada por um terço de bolinhas de madeira bento pelo “Padin Ciço”. 


A noite começava a descer do céu tingindo toda a terra com a negritude característica das noites sem lua no sertão das caatingas. A escuridão pouco importava e nem assustava Mariazinha que, ao longo dos seus 18 anos, tornara-se parceira daquele ambiente e conhecia como ninguém os segredos da caatinga nordestina e seus mistérios noturnos. Ela se guiava pelo instinto feminino que a levaria, no escuro ou não, até sua cara metade.


Caminhou por entre algarobas, xique-xiques, mandacarus, juremas e catingueiras. Quando o cansaço bateu no costado de Mariazinha, ela não contou conversa. Arriou o saco-mala fazendo-o de travesseiro e, ali mesmo, embaixo de um pé de ipê-roxo, deixou o corpo relaxar e a mente entregar-se ao sono cujo sonho esperava ser uma pista para sua cara metade, algo que lhe desse a certeza de que estava indo na direção certa. Afinal, não era apenas o coração que a empurrara para fora da velha choupana de sapê com teto de palha de coco onde deixou “paiinho” e “mãiinha” com olhos mareados de lágrimas. Havia, ainda e muito forte, o desejo açodado da menina mulher que se escondia dento de Mariazinha.


Quando o sol torturava a caatinga como um braseiro de churrascaria gaúcha, ela despertou. Piscou três vezes o olho esquerdo e duas o direito. Ajeitou o cabelo ainda sentada na terra seca e mirou o horizonte que era seu destino. Uma linha reta ao longe dividia o céu de um azul provinciano da terra de um marrom descolorido. Era pra lá que Mariazinha ia. Sem dó nem piedade de seu corpo e com a fé em “Padim Ciço” que movia, não montanhas (porque naquele lugar elas não existiam), mas um corpo jovem cheio de vontades e desejos cobertos por uma estamparia colorida de chita barata.


Tomou um gole de água que trazia na cabaça pendurada no corpo, limpou a boca e danou-se a dar passadas rápidas levantando poeira no chão quebradiço pela seca dos últimos cinco anos. Olhava o horizonte com fixação dos marujos que descobrem terra depois de meses navegando num mar bravio. Em seu rosto os lábios desenharam um estranho sorriso. O sol que a castigava não incomodava Mariazinha. Pensava ela na professora do colégio que ensinava os meninos e meninas da região numa espécie de escola itinerante. 


Lembrou da história dos navegadores que se lançavam ao mar rumo ao desconhecido e que ousavam enfrentar os perigos de uma terra plana, onde o horizonte era o fim do mundo e depois dele, quem lá chegasse, sofreria uma queda fenomenal caindo num abismo desconhecido onde, ainda segundo as histórias, habitavam monstros sinistros com uma fome tão grande que eram capazes de comer de uma só vez mais de duzentos homens. Sorriu para si mesma lembrando a professora e mirando o horizonte.


Mariazinha só parou naquele dia para comer um pedaço de carne de peba, salgada no início da semana por seu pai, e descansar um pouco debaixo de um pé de juazeiro. Depois voltou a bater pernas naquele sertão ensolarado. Quando a tarde açoitou seu corpo exigindo que ela parasse, ela olhou o horizonte que ia perdendo sua nitidez e misturando-se com o céu que já não era mais tão azul provinciano. Queria continuar. Queria alcançar o horizonte ainda naquele final de tarde. Mas o corpo entrara em greve e paralisava seus movimentos, não como grevista ideológico, mas como advertência de problema maiores caso furasse a greve dos músculos. Entregou os pontos.


Dalí de onde estava, via o horizonte sumir de sua visão. Não demorou muito e a escuridão sertaneja voltou a dominar toda a paisagem. Não havia mais o que fazer naquela noite, pensou Mariazinha. Ela sentia muito calor e havia suado muito durante a caminhada. Como estava sozinha, decidiu tirar a roupa e refrescar um pouco. Perto de onde estava havia uma cacimba d´água. Ela foi até lá nua e começou a molhar o corpo com uma água salobra e meia barrenta. Estava matando o calor acumulado daquele dia.


Depois, e ainda nua, voltou para onde estava seus pertences. Estendeu o vestido no chão de terra surrada e deitou-se olhando para o céu sem lua e cheio de estrelas que começavam a piscar como pirilampos celestes. Assim adormeceu. No rosto os lábios desenhavam o riso feliz de que está em pleno sonho de felicidade. O corpo nu debaixo daquele céu, largado inocentemente na caatinga, era a mais bela pintura que um artista plástico poderia imaginar.


Naquela noite, sonhou com seu príncipe encantado, sua cara metade, chegando num bonito cavalo negro. Ele se deitou ao lado dela e ambos se entregaram ao amor fazendo explodir o mundo ao seu redor. Assim passaram toda a noite e entraram pela madrugada conhecendo cada um os segredos e desejos do outro. Tudo era permitido. O sonho, a vida, o amor. Quando o dia raiou, o príncipe encantado, ou a cara metade, de Mariazinha limpou o sangue de suas mãos, olhou para ela nua deitada no chão, montou seu cavalo e partiu num galope louco pela caatinga.



Mariazinha não despertou mais do sonho e nem continuou sua caminhada rumo ao horizonte. 


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Sinhá Mocinha

(Paulo Estanislau)



    Antonia Mendes era uma dessas nordestinas que engrandecem a história da região e do seu povo. De fé inabalável, coragem inquebrantável e religiosidade quase islamita, andava uma légua, do sítio em que morava até a igreja, pra fazer suas orações. Quando voltava, acompanhada da lua, pela mata do brejo dos macacos, contava dormente por dormente daquela ferrovia que levava ao seu sítio, desfazendo aquela légua de arma na mão, sua bíblia.

    Paraibana de Piancó, acudia por Sinhá Mocinha. Mulher corajosa de botar qualquer Chuazenégue pra correr, ou deixar no chão, à preferência do freguês.

    Pra vocês terem noção da valentia dessa sertaneja, certa feita, tendo recebido a visita de Lampião e sua tropa, sem comunicado prévio, o que era bem do feitio daquele líder sertanejo, devido às circunstâncias da vida, informou ao cangaceiro que não tinha comida pra tanta gente e pediu-lhe que procurasse repouso em outro sítio.

    Lampião que quando apeava não arredava, a não ser a custa de muito bacamarte, vendo um saco de farinha que ela mesmo moera, respondeu:

    — Sinhá, tô vendo que a senhora tem um bom fardo de farinha, tem uns porcos no chiqueiro e os meus homens estão cansados e com fome.

E  completou:

    — Um pirão e um pedaço de carne já é de grande serventia. Vou no quintal escolher um barrãozinho.
 
    Ela concordou com o cangaceiro que já se dirigia ao chiqueiro e, com toda sua coragem o chamou, interrompendo seu caminhar, e disse:

    — Comandante, os porcos são meus, quem escolhe sou eu.

    Por um momento todos ficaram apreensivos esperando a reação do cangaceiro, que se voltou para ela, bateu com o chapéu na mão e disse-lhe:

    — É justo Sinhá!

    Porco morto, porco feito,
    pirão cozido,  almoço comido,
    Lampião satisfeito,
    tropa na caatinga
    e a história não finda.

    Voltando à Sinhá Mocinha, outra feita, sabendo que ela morava sozinha com as quatro filhas, um indivíduo, certamente mal intencionado e, obviamente, sem um pingo de juízo na cabeça, resolveu fazer uma visita àquela senhora no meio da noite e também sem avisar. O erro do visitante foi, não conhecendo Sinhá, visitá-la sem aviso e sem convite no meio da noite e querer entrar pelo telhado.

    Aquela senhora, evangélica, séria, decente, que costumava dormir quando a lua acordava e acordar antes do sol, não iria receber aquele cidadão inconveniente de braços abertos, principalmente uma hora daquelas.

    Só que ele,como já disse, por não conhecer aquela senhora, jamais imaginaria o que lhe aguardava. Não que estivesse preocupado com isso, mas era bom estar.

    Quando cuidadosamente retirou algumas telhas e, já com a metade do corpo para dentro, ouviu uma voz suave fazendo-lhe a seguinte pergunta:

    — Amigo, tá subindo ou tá descendo?

    Nem teve tempo de responder, não que fosse necessário. De repente, sentiu uma forte dor em suas nádegas, provocada pela perfuração de um chuço de um metro, com uma ponta fina de aproximadamente dez centímetros, que aquela senhora usava para catar folhas caídas das árvores. O invasor saiu como um foguete pelo mesmo buraco que tentava entrar.
 
    Dele, o intruso indesejado, não se teve mais notícias. Só ficou a lembrança do berro. Certamente, por muito tempo não sentou.

    Possivelmente, por muito tempo, nada tenha lhe causado mais assombro e pavor que ouvir o nome da Sinhá Mocinha.

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“Uskarafeiu”

(Marcus Ottoni)

Eles formavam uma dupla diferente do ponto de vista da estética anatômica masculina. Eram algo que misturava ogro com arara em corpo de rinoceronte. Para muitos que os conheciam eram o suprassumo da aberração humana fruto de um acasalamento entre algum ET perdido na galáxia com um ser humano desprendido de pudor e sem qualquer preconceito na pratica do sexo ardente.  Na verdade, a mãe daquela dupla era uma “belezura”. O mesmo não podia ser dito com relação ao pai dos “uskarafeiu”.

Porém, embora tivessem crescido sob o manto do “bulling” diário e constante anos após anos, eles pareciam gostar de serem tratados como “diferentes” dos outros meninos. Andavam sempre juntos, comiam juntos, iam ao cinema juntos, jogavam bola juntos no mesmo time de peladeiros, enfim, ninguém jamais viu os dois separados em qualquer ambiente público. Eram unha e carne e, por mais que a feiura física pudesse detoná-los emocional e socialmente, eles jamais foram vistos reclamando das chacotas ou piadas de que eram vítimas pelos ditos “meninos normais”. 


Assim cresceram no bairro onde quase todos os moradores do lugar os conheciam e onde ganharam o apedido de “uskarafeiu”. Com o passar dos anos e a idade acrescentando mais anos de vida à dupla e ampliando a anatomia de cada um, maximizando os detalhes da feiura natural do berço, eles se tornaram homens feitos, formados em Direito e farristas de primeira linha. Isso sem nunca desconsiderar os amigos de infância que ao longo de todos aqueles anos foram os “chacoteiros” da dupla.


Nessa fase adulta, a feiura dos “uskarafeiu” ficou mais realçada e era usada por alguns pais para disciplinar filhos rebeldes. Eles eram fotografados e suas fotos ilustravam as ações corretivas aplicadas em crianças desobedientes quando alguma travessura era feita por elas ou uma birra sem motivo era ensaiada pelos pimpolhos. O temor das crianças vitimas desses corretivos era que a desobediência ou o mau feito pudesse transformá-las em seres com a aparência dos “uskarafeiu” num futuro muito breve.


Para eles aquilo era uma “ajuda” que davam na educação das crianças tornando-as mais obedientes e no futuro cidadãos e cidadãs responsáveis. Eles até posavam para fotos ressaltando algum detalhe da feiura para assustar mais ainda os pequenos guris e gurias que receberiam o corretivo paterno. Na grande maioria dos casos, as crianças mudavam da água para o vinho seu comportamento familiar e social. Qualquer recaída, as fotos dos “uskarafeiu” surgia a noite no quarto de quem fizera travessura.


Fora isso, “uskarafeiu” levavam sua vida normalmente. Moravam na mesma casa dos tempos de criança com os pais, já idosos, e continuavam sempre juntos quando estavam em público, ou quando saiam para o trabalho ou lazer no possante Maverik V8, vermelho com listras pretas e pneus tala-larga faixa branca. Lado a lado, iam os dois sorridentes cidade à fora. 


Ninguém nunca havia visto os dois acompanhados por meninas, quando adolescentes, e mulheres, agora como adultos. Nem mesmo na escola eles se aproximavam das meninas, a não ser quando uma ou outra garota queria tirar proveito da Inteligência privilegiada da dupla o que causava inveja mortal aos “bonitinhos” da classe. Fora isso, eram os dois e ninguém mais. Havia quem dizia que eram gays e que mantinham um relacionamento íntimo incestuoso, porque jamais conseguiriam conquistar uma mulher com tamanha feiura.


Todo ano o bairro realizava uma festa de confraternização no final do ano quando todas as famílias se reuniam na praça central da comunidade. Rolava de um tudo. Musica, churrasco, danças, rodas de conversas e uma alegre gincana que mobilizava todos os moradores e tudo terminava no início da noite com um grande coral popular entoando uma canção de promoção de autoestima, solidariedade, fraternidade e igualdade.


“Uskarafeiu” sempre estiveram presentes ao lado de seus pais. Participavam de todas as atividades. Eram considerados os mais entusiasmados e aqueles que mais colaboravam para a realização do evento, tanto laboralmente, como financeiramente. Mas sempre os dois com o velho casal sem mais ninguém. Assim acontecia há anos.


Porém, na festa daquele ano, lá pelos idos de 1980, “uskarafeiu” surpreenderam a todos ao aparecerem acompanhados por quatro lindas mulheres, tipo modelo internacional tratada a pão marroquino e leite de cabra montanhesa dos Alpes suíços. Lindas de arrancar assobios dos marmanjos mau casados e de deixar menino novo ruborizado sem poder se levantar do lugar onde estava sentado. Eram quatro maravilhosas mulheres e duas aberrações humanas já identificadas no início desta crônica.


Naquele dia, todas as atenções se voltaram para “uskarafeiu” e suas acompanhantes estonteantes de belas e bem-feitas de corpo. “O contraste do século”, disse alguém ao lado de sua gorda esposa. “Impossível ser verdade”, arriscou outro com a magrela da namorada a tira colo. “São travestis”, assegurou um terceiro de riso amarelo e rodeado de homens bem-apessoados fisicamente. E assim passou-se o dia sem que “uskarafeiu” se importassem com os comentários depreciativos que ouviam.


No final da festa, ainda boquiabertos com os beijos, abraços e amassos trocados pelos “uskarafeiu” com as beldades que os acompanhavam, os mais afoitos tentaram uma aproximação para ver se conseguiam uma ponta naquele “affaire” dos “uskarafeiu”, mas foi inútil qualquer tentativa dos “bonitinhos” do bairro. A dupla com suas quatro acompanhantes continuou na dela até o encerramento do evento. Quando os fogos de artificio começaram a pipocar no céu enchendo o firmamento de cores, formas e chuviscos coloridos, “uskarafeiu” e suas acompanhantes partiram no possante Maverick V8. 


Antes de sumir dobrando a esquina, os moradores puderam ler no para-brisa traseiro do carro num adesivo enorme: “USKARAFEIU QUE COMEM GENTE BONITA”.


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O MICO

(Paulo Estanislau)

 

De acordo com os estudiosos da matéria, o Mico pode ser elemento de composição designativo do cogumelo (Micoderma, Micoteca) ou a designação de várias espécies de sagüi, aquele singelo macaquinho mal educado.

Porém, para a maioria absoluta dos seres viventes de todo o universo, o mico é algo angustiante, assustador, por vezes, apavorante, um verdadeiro terror. Só engraçado, para aqueles que possuem um
necrofágico senso de humor.

Mico não se paga (quem em sã consciência pagaria por algo que jamais desejaria ter), nem se pega, se é pego. É como resfriado, gripe, sarampo, catapora, rubéola, quando você menos espera ele chega e já era! O que é pior, diferentemente de algumas doenças da infância não vem uma vez só. O mico vive a espreita dos descuidados Como já disse, quando você menos espera ele lhe alcança e lhe abraça. Ele é um monstro. Dele não há como escapar, porém, não sofra antecipadamente, relaxe, apenas acredite, o seu um dia vai chegar.

Certamente era sobre ele que dissertava o poeta, quando escreveu:

---- É fogo que arde sem se ver ---- É ferida que dói e não se sente  ---- É contentamento descontente ---- É dor que desatina sem doer.

O meu primeiro chegou ainda na infância, aos oito anos. Jogava bola com os amigos, a partida estava nove a nove e era de dez, recebi a bola sozinho no ataque e parti para o gol, gol sem goleiro como tem que ser toda pelada que se preste, de repente vi meu avô Adolfo Gelenske, larguei a bola e saí correndo ao seu encontro para abraça-lo. Aquela visita era prenúncio de um dia cheio de balinhas, doces, pirulitos e até alguns chicletes, escondidos, é claro. Na carreira, deixei um rastro de felicidade, quando o alcancei abracei suas pernas, que eram maiores que eu.

Para minha tristeza e decepção não era o meu avô, mas parecia, de longe parecia muito. O mico havia me encontrado. Antes, talvez, que a caxumba ou a catapora.  Para tristeza e raiva dos meus amigos do time, nós perdemos o jogo. E para alegria deles tiveram motivo para muitos dias de zoação. Toda vez que me viam gritavam: “Vovô Adolfo”.

Porém nada se compara ao mico de chamar para o velório e enterro do Raimundo Nonato, colega de diretoria do Sindicato dos Bancários, falecido em acidente de carro na noite anterior. Convidei vários amigos nossos e à medida em que chegavam, encontravam na capela por mim  informada um defunto que jamais haviam visto, um desconhecido, muito embora com o mesmo nome. Quando cheguei todos me esperavam no portão do cemitério, ansiosos por uma explicação. Pedi que aguardassem um pouco e me dirigi à capela, só então me dei conta do engano cometido. O defunto era o Raimundo Nonato, colega de Banco Itaú, não o Nonato, colega de sindicato.

O problema foi que recebi o telefonema na noite anterior, de uma jovem que identificou-se com sobrinha do Raimundo Nonato, informando o acontecido. Abalado com a notícia não me dei conta de que conhecia dois e não apenas o do sindicato.  É verdade, o desgraçado do mico abraçou-me novamente.


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Areias, pegadas, oceano e saudades

(Marcus Ottoni)

Pisar novamente aquelas areias molhadas é, na verdade, amassar solitariamente os sonhos que se ergueram alguns anos atrás quando os passos eram seguidos por outros pés que edificaram esperanças e cumplicidades. Muita coisa mudou. As grandes paredes de rochas arenosas ganharam novos contornos e as pedras que formam as passarelas entre o mar e a mata redesenharam suas posições revelando estranhas criaturas que se banham no vai e vem das ondas oceânicas do Atlântico Sul.


O infinito do horizonte marcado por um céu azul provinciano de tons fortes se infiltra no mar como a querer esconder os destinos de quem ousa buscar novos portos para aliviar a ânsia de amar e a dor da angústia de retornar e saber ser preciso navegar mesmo sem ter noção de onde chegar. A brisa de um vento sueste é ainda tão calma como era no tempo em que o amor percorria, lado a lado, o caminho banhado por gotas sutis de água salgada.


Com a mente divagando pensamentos e saudades, as pegadas vão cravando na areia os passos que pretendem refazer o caminho tantas vezes percorrido a pouco mais de uma dezena de anos. Bons anos, arrisca a mente a criar mecanismos perigosos de lembranças que são boas e agradam as recordações de quem pisa, agora, sozinho, em praias que dividiu com quem o quis seguir sem medo de se perder no percorrer de uma estrada longa e tortuosa, como são os caminhos do coração.


O sol, talvez o mesmo de antigamente, tem agora um novo calor. Não queima, não arde, não atrapalha o caminhar. Apenas aperta o peito quando o coração pula o tempo e corre atrás do passado que já não volta mais e que é bom porque está onde está e, assim, diz a razão, deve ficar como lembrança boa e saudade saudável. Caminhar e ver, sem olhar, o que escrevem as pedras, as areias, nas rochas, a mata, o vento, o mar e o silêncio do tempo que passa a passos lentos sem pressa de chegar a qualquer ou nenhum lugar. 


Há, entretanto, uma porta de regresso que se abre na memória quando se aproxima de um destino que não existe mais, de um ponto que não mais está aqui, da alcova natural feita de relva e areia, de brisa e respingos de água do Atlântico Sul, aonde, pela primeira vez, se originou o pecado sem culpa, a entrega sem posse, o dar e receber, o querer sem limite e a fusão de corpos, mentes e desejos numa explosão de êxtase completo, onde dois são um e um único momento se transforma no início, meio e fim da mais pura e louca paixão.


Deixar vagar o pensamento enquanto os pés moldam pegadas de retorno, indecisas como a vontade de ficar, é a ordem natural do caminhar. A lembrança de formas, gestos e sons é tão presente como real foi no tempo do ontem. E no tempo do hoje a certeza de que se prosseguiu deixando pegadas de bons momentos, garante, assim, lembranças felizes de um tempo que faz parte da parte boa da vida da gente. 



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VIVA MUNDICO!

(Paulo Estanilau)


Raimundo é, ou era, um sujeito complicado mas que vale a pena ser lembrado. Há muito não se tem notícias suas quem sabe tenha conseguido, enfim, o que por muito tempo buscou, dar cabo a sua im(própria) vida. Quiçá, o tempo o tenha feito em seu lugar. Ou Não! 
 
O impróprio de sua vida era a forma como a levava, em cabarés e estabelecimentos de menor categoria, vez ou outra se envolvendo em brigas pelo costume de apaixonar-se por damas que viviam para alegrar os corações dos homens que, solitários como ele, buscavam a felicidade em seus braços. Braços, pernas, bocas, seios e onde mais pudessem.

Contam, os que o conheceram mais de perto, que sua tristeza decorria do nome com o qual fora batizado.  Constantemente era visto a andar pelas ruas balbuciando a seguinte frase: 

— Ah mundo imundo, o que seria de mim se não me chamasse Raimundo!

O seu sofrimento, segundo os amigos mais antigos, remonta do tempo de primário, quando, para sua tristeza, os colegas resolveram rebatizá-lo por Mundico. Era briga atrás de outra. E não adiantava mudar de escola, era sempre a mesma história.

Mundico estava sempre brigando com os que assim o chamavam. Para ele, aquilo era palavrão. Dizem que quando adulto, tentou por diversas vezes, sem sucesso, mudar de alcunha, assim definia a forma como fora batizado. Aquilo não era nome.

Pensou em mudá-lo para Orlando, de uma só vez homenagearia dois de seus ídolos, o Silva e o Dias. O Excelentíssimo Juiz, insensível às questões culturais, não lhe concedeu autorização.

Pensou em Carlos. Da mesma forma, estaria prestando homenagem a dois homens de grande valor, pelos quais nutria enorme admiração, Lamarca e Marighella, muito embora não se envolvesse em política. Mais uma vez, não logrou êxito. Ficou matutando, será que o Juiz negou por serem dois grandes revolucionários brasileiros.
 
Outras tentativas descambaram pro mesmo rumo. O seu derradeiro ato naquela sofrida peleja, foi sugerir ao Juiz o nome Paulo, citando Freire e Cavalcanti. Acreditava que, por serem eminentes figuras da educação e da lide jurídica de Pernambuco, teria sucesso. Ledo engano! Viu-se mais uma vez frustrado em sua intenção. Segundo o Magistrado Demócrito Ermenegildo, não havia justificativa plausível para a mudança de seu pseudônimo.

    Cansado dos muitos insucessos, resolveu por termo à sua tristeza pulando da ponte Duarte Coelho, no rio Capibaribe. Foi a primeira tentativa. Ter sucesso não era o seu destino. Foi salvo por um turista que passeava no velho catamarã Garcia D’Ávila pelos rios do Recife.

    Tentou novamente. Comprou de um camelô, na rua do hospício, diversos comprimidos para os mais variados males e os ingeriu, todos de uma vez. Adquiriu com seu gesto uma forte dor de estômago e uma diarréia, que lhe rendeu dois dias de aconchego a um vaso sanitário. Eram falsos. Farinha de trigo, cola e sabe-se lá o que mais.

    Foi quando lembrou de um quartel em Casa Forte, o Parque de Motomecanização, o mesmo daquele coronel Darcy Villoc Viana, o militar que arrastou de corda amarrada ao pescoço, pelas ruas do bairro, um dos grandes homens brasileiros o Sargento Gregório Bezerra.  Agora não teria falha!

     Dirigiu-se àquele bairro do Recife e, já noite, parou em frente aquele quartel e gritou:

    — Viva o Partido Comunista Brasileiro!

    O militar que estava na guarita correu em sua direção, de fuzil nas mãos, baioneta apontada para seu peito, olhou em seus olhos e disparou!

    — VIVA!!!!
 

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O despertar do prazer

(Marcus Ottoni)

O dia amanhecera nublado, com nuvens escuras escondendo o sol e acinzentando a manhã. Embora não chovesse, o clima era abafado e calorento. A grande janela de vidro do quarto estava totalmente aberta na esperança de que algum sopro de vento penetrasse no ambiente amenizando o calor que teimava em desafiar as lâminas do ventilador de teto que corriam, uma atrás da outra, numa velocidade frenética fabricando vento artificial.

Na enorme cama, colocada estrategicamente no centro do quarto, em frente a grande janela de vidro, Paula continuava jogada por sobre lençóis completamente nua. Ensaiava movimentos lentos, preguiçosos, serpenteando por pontas de tecidos e montes de penas escondidas nos travesseiros que acolhiam seu sono durante as noites de verão naquela beira de rio rodeada por uma floresta tropical. Rolando de um lado para o outro como a não querer sair de onde estava, fazendo-se gata no cio e se oferecendo ao tempo para que o cheiro da fêmea dominasse o ar e trouxesse, mesmo que imaginariamente, o macho que a possuiria despudoradamente aplacando seu incontrolável desejo de sexo matinal.

Ela não queria levantar, não queria se dar ao dia que chegava escuro quente e abafado. O calor que sentia no corpo era suficiente para deixá-la sedenta de despudor e, preguiçosamente, luxuriante naquela manhã. Sua mente viajava por peitorais, coxas, nádegas e membros masculinas, se não tão perfeitos, mas de uma textura e musculatura ideais para o pecado que ela queria saciar com seu corpo e suas entranhas perdidas em vontades e desejos inconfessáveis. A boca, ora se abria em murmúrios sussurrados para ela mesma emitindo sons incompreensíveis e totalmente pervertidos, e ora se deixava, lasciva, a língua caminhar molhada por lábios de carne farta.

Os olhos não se abriam. Talvez temerosos de que a luz escura daquela manhã exorcizasse aqueles demônios imaginários que a devoravam com tamanha volúpia e para quem ela se entregava sem medir a dimensão do pecado que vivenciava, e sem temer o momento da explosão de seu prazer na plenitude de seu corpo e na intimidade de seu ser fêmea enlouquecida pela luxúria infinita que se acomodou no seu íntimo noite adentro, possuindo-a como um ser dominador que entra e se apossa da alma onde o prazer controla a mente e o coração. Não os abriria até o momento em que os demônios que a tentavam e a tocavam fizessem seu corpo revirar-se por voltas e voltas ao seu redor e se jogasse desvalido e arquejante no chão de pedra polida que sustentava a cama.

Lambeu os lábios, sussurrou palavras obscenas para si mesma, tocou seu sexo, seus seios. Alisou suas pernas, coxas, nádegas e o rosto. Apertou os seios contra si mesma e mordeu suavemente a língua enquanto penetrava seu sexo com o membro imaginário do demônio que participava daquela orgia solitária. Contorceu-se encolhendo o corpo e quase tocando os joelhos no próprio queixo. Deixou sua mão entre as coxas, coladas no sexo e jogou a cabeça para trás abrindo a boca como a pedir que a vida entrasse por ela e penetrasse seu corpo até o mais íntimo de sua essência de fêmea possuída pela imoralidade da entrega sem vexame ou pudor, sem limite ou tabu, sem pecado ou culpa.

Sentiu sua carne rasgar. Sentiu seu corpo se abrir. Sentiu sua alma ser penetrada e seu coração acelerar. Havia um demônio entrando nela com toda a força da luxúria dos Deuses caídos. Como aríete que derruba portões sagrados de castelos de reis vencidos. Sentiu o fogo do prazer se propagando pelas veias e como ferro em brasa viu suas entranhas se incendiaram levando-a ao delírio que precede o prazer total do orgasmo inimaginável. Contorceu-se, aninhou-se no próprio corpo. Quis gritar, se abrir de vez e pedir para que aquilo nunca tivesse fim. Queria todos os demônios naquele momento. Queria ser fêmea possuída. Queria ter na carne o ferro da santidade proibida. Queria que a vida fecundasse o prazer. Queria que seu corpo fosse de todos os pecadores e de todo o mundo. Queria ser a meretriz, a profana, a rejeitada, a vadia, a dama de todos os homens, ou de todos os demônios que o céu e a terra tenham gerado. Queria ser rainha do pecado, deusa da indecência, senhora de todas as fêmeas. Queria explodir com os demônios imaginários em seu interior.

Gritou. Gritou mais alto que pôde. Urrou como loba em noite de lua cheia chamando a matilha para a caça. Sacudiu-se por momentos muitos. Balbuciou palavras imorais. Chamou para si todos os pecados existentes e deixou que a explosão se fizesse inteira, completa, plena, absoluta... arquejou, soluçou, chorou, sorriu e respirou fundo por minutos eternos. Sentiu o suor umedecendo seu rosto, sentiu o calor de seu corpo indo embora, sentiu o sol entrando pela janela, sentiu o dia amanhecendo.


Fechou os olhos e viu seus demônios desaparecendo no ar. Havia calma agora em seu coração naquela manhã de verão.


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O FLATULENTO

(Paulo Estanislau)


Dizem os mais experientes que educação vem de berço, sua falta não vem, necessariamente, do mesmo ambiente. No caso do Luis Fernando a sua flatulência vem desde o berço e perdura até hoje, mais de sessenta anos após ter abandonado aquele singelo móvel infantil. Conta sua mãe, Dona Isaura, que ele não arrotava após mamar, flatulava.


Na escola, ainda no primário, em plena sala de aula, costumava liberar seus gazes intestinais de forma silenciosa e acusar o colega à sua frente. Era o primeiro a chamar a professora e pedir pra levantar pois não estava aguentando aquele mau cheiro. Graças a sua imensa capacidade para a arte cênica, os mestres acreditando em sua inocência, terminavam quase sempre por repreender seus colegas.


Certa feita, em um domingo de verão, sob um sol de quarenta graus, voltava com seu pai da famosa feira de Carpina, em uma Kombi velha que servia de lotação e que não passava dos quarenta km por hora, pouca ventilação, pois dos vidros só abriam o do motorista e do carona, isso pela metade, ele nesse ambiente quase infernal resolveu liberar seus gazes.

De pé, encostado ao banco do condutor, aproveitando o vento, muito embora quente, que entrava por aquela janela esticou sua cabeça quase a encostando na do motorista e os liberou, de forma silenciosa, um pum do tipo ninja assassino, terrorista suicida. Não demorou muito para que uma pobre sexagenária senhora, sentada bem atrás do pequeno Luiz Fernando, o Lula, e bem em frente ao seu orifício ventoso, começasse a passar mal.
    

Aquela senhora que mal conseguia respirar, reuniu todas as suas forças e numa última tentativa de salvar sua vida e as dos demais companheiros de lotação, gritou:

    — Motorista, para, para que eu vou morrer!


Ele, o autor daquela façanha, continuava inerte, aproveitando o ar puro que entrava pela janela. Bem mais puro que o de dentro daquela velha condução.


Seu pai, numa tentativa heroica de ajudar aquela agonizante senhora, gritou:


    — Para logo motorista, senão vai todo mundo morrer aqui atrás.


Assustado com o vozeirão daquele senhor, alto forte e de cara emburrada, o motorista resolveu parar o veículo. Certamente aquele ato heroico do emburrado senhor era também um gesto de autopreservação.   


Com a simples redução de velocidade, as portas se abriram e os passageiros começaram a pular. Menos aquela senhora, que já não tinha mais forças e precisou ser abanada. Após o total estacionamento do veículo e a parada na circulação de ar em seu interior, os passageiros do primeiro banco sentiram na pele, ou, no nariz, o motivo do desespero dos demais companheiros de viagem e saltaram correndo.
    

Teve início uma discussão sobre quem poderia ter cometido ato tão feroz contra os passageiros. Nem o motorista foi isentado de culpa, nem aquela pobre sexagenária senhora. Apenas sobre as três crianças, o Luiz Fernando de 11, seu irmão de 10 e outro menino, aparentando 8 anos, não recaiu qualquer suspeita. Quem em sã consciência imaginaria sair de uma criança gazes tão letais.
    

Sem qualquer possibilidade de elucidação do fato, pois todos negavam sua autoria, resolveu-se após alguns minutos seguir viagem. Obviamente, com os devidos pedidos de que o fato não se repetisse.

Antes que todos entrassem o pai daquele anjo o afastou do grupo e fez o seguinte alerta:


    — Se você fizer isso novamente, quando chegar em casa apanha, ouviu?
    

Ele balançou a cabeça afirmativamente e entrou. Aquele criador certamente conhecia a capacidade de sua criatura.

E a viagem prosseguiu, sem mais interrupção.


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 Fêmea divinal

(Marcus Ottoni)

Ela já não é mais uma menina entusiasmada com o mundo que se descortinava à sua frente lá pelos seus 15 anos. Também não se envergonha mais ao ouvir palavras que despertavam a imaginação e incendiavam a libido precoce. Também não é mais a pequena desajeitada utilizável para todos os fins, da chacota grupal ao toque solitário nas noites de festas. Não, não é mais aquela esquelética morena com sardas no rosto e cabelos amarrados num eterno e enorme rabo de cavalo. Não, decididamente, não é.


Tornou-se uma mulher esculpida pela própria natureza sem as aberrações conquistadas pelas feministas em horas a fio e dias intermináveis em academias masculinizando o corpo e bombando músculos com todo tipo de produto que se propõe a fazer da mulher um homem completo e saudável como todo macho potencialmente narcisista.


É, agora, em seus 30 e poucos anos, o próprio croquis da beleza da fêmea que traduz corpo à fora a leveza da sutil elegância de quem sabe o que esconde em curvas côncavas e convexas e tem plena consciência do por que esconde tamanha misteriosidade e formosura implícita. A magrelice deu lugar a silhueta esguia e torneada milimetricamente pela liberdade inquestionável de um corpo que conhece seu estado de divindade.


Também já vai longe o tempo do rubor nas faces quando sua alma despejava vontades pelas janelas do olhar e descortinava próximo o objeto do desejo a se insinuar despudoradamente como pavão em dança de acasalamento. Nem se umedece mais com tamanha timidez como nos tempos em que descobriu que o lugar mais sagrado de uma mulher, não é o corpo por onde o macho penetra, e sim, a alma com a qual a mulher se realiza.


Agora tudo é diferente. Senhora de si, sem ser senhora de nada. Dona do próprio nariz, sem ser dona do mundo. Bela como as imaginações masculinas desenham as mulheres e livre como os homens tanto odeiam nas mulheres que querem domar e chamar para si como propriedade vitalícia. É a fêmea perfeita, não apenas em carne e osso, curvas e saliências, segredos e mistérios, mas, na essência da feminilidade explícita que desperta a volúpia e embalsama o espírito em pirâmides de emoções e sentimentos.


Hoje, ela é mais sublime do que pode imaginar um poeta  em seu devaneio lírico e tão doce como o mel que se bebe quando o prazer explode em nossa boca produzindo o louco delírio da insanidade enrustida que consome o ser e joga qualquer mortal aos pés de quem o deseja em total e irrepreensível submissão. 


Agora, e ela quem decide como se processará a agonia da liberdade definitiva fazendo de um único minuto o eterno e inacabável momento da aliança entre a criatura e o criador. 


Ninguém mais...



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O Francês distraído

(Paulo Estanislau)


    Fernando, o Francês, é um grande amigo nosso, inteligente, bom companheiro, solicito, sempre disposto a ajudar, mas convenhamos, é o sujeito mais distraído que conheço, principalmente depois de ingerir algumas doses da boa wiborowa ou do velho buchannas. Certa feita, após o término de um casamento de muitos anos, resolveu ir, como forma de amenizar aquele mal causado pela separação, a um baile no Motonáutica. Como faltava-lhe jeito, ou coragem, para chamar uma parceira para dançar, pelo desacostume de tantos anos, resolveu ficar sentado saboreando seu uísque preferido, que havia levado na bolsa de uma amiga.

    Nosso amigo, solitário em meio a tanta gente, já que os amigos dançavam no salão ao som de Mourir d’aimer, entoada por um Charles Asnavour pernambucano, Tiãozinho, vocalista do Squema Seis, monologava com a garrafa de buchannas, naquele momento sua companheira de mesa. Não sabia ele que naquele clube, espreitando a todos, os tristes e os alegres, rondava o malévolo MICO, pronto a abater o primeiro que lhe despertasse interesse.

    O infortúnio escolheu Fernando. Com certeza pressentiu sua fragilidade.

    Sentada a uma mesa vizinha, bem às suas costas, uma bela jovem de cigarro preso aos dedos bate em seu ombro e pergunta-lhe se tem fogo. Tinha e, embora o baile ainda estivesse no começo, já quase estava de. Ele educadamente levantou-se, retirou o isqueiro do bolso e acendeu gentilmente o cigarro da vizinha. Aqueles olhos, aquela boca, principalmente aquele decote, acenderam seu libido.

    Interpretando a iniciativa daquela bela jovem, também solitária em sua mesa, como início de uma aproximação, o Francês resolveu chamá-la para dançar. Ela recusou, não sabia dançar. Ele não se deu por vencido, disse-lhe não haver problema, pois também não sabia muito. Ela manteve a recusa, não se sentia bem. Ele insistia, com a dança ela certamente sentir-se-ia melhor e, segurando em sua mão tentou fazê-la ficar de pé. De repente, uma amiga do Fernando, que de longe observava a cena, largou seu par no salão e veio ao socorro daquela jovem, retirando-o para dançar. Na verdade, o mais correto seria dizer que ela veio ao socorro do nosso insistente amigo que pretendia dançar com aquela bela jovem.

    No salão, questionada sobre o motivo daquele seu gesto, nem precisou explicar, mostrou ao nosso amigo que aquela jovem levantara-se e preparava-se para sair. Sair com a única perna que possuía, pois a outra era uma muleta. Talvez estivesse indo para uma mesa mais distante, talvez fosse mesmo embora, e certamente o estava fazendo para salvar a imagem e o orgulho daquele Francês distraído.
 
    Se essa fosse a sua primeira ou única distração, talvez encarássemos como coisa normal. Porém, outra feita, o nosso amigo Fernando, em uma festa na casa de uma amiga comum, após algumas doses do maravilhoso buchannas e impressionado com a beleza da funcionária que atendia aos convidados, resolveu tirá-la para dançar. A gentil e bela jovem até que tentou resistir explicando que estava ali a trabalho, mas o nosso persistente amigo não aceitou desculpas, retirou a bandeja de suas mãos e a puxou para o salão. Como era amigo da dona da casa, não haveria problema.

    Com seu rosto colado ao dela demonstrou toda sua habilidade de dançarino, fazendo inclusive, com que todos parassem, apenas para vê-los dançar. Era nisso que acreditava o nosso amigo Fernando.

    No outro dia, curado o porre, ficou sabendo que aquela dançarina maravilhosa chamava-se José Raimundo.


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O FRIO NA ALMA

(Marcus de Carvalho)

Não é inverno e também não é verão. Outono, nem pensar. Primavera, se fosse...

Mas faz frio, não chove. Um frio como garoa fina infiltrando-se ossos à dentro, ultrapassando a pele e se alojando no tutano em todo o corpo. De lá, como bicho aninhado, congela tudo. Dos pés à cabeça, da cabeça aos pés. Da pele enrijada a tripa agoniada. Diria o nordestino desassossegado: eita frio da mulesta!

E é mesmo. Pense numa friaca sem fim, sem ponto final como frase de conversador de araque contando mentiras ao léu. Dói tanto que a dor tão sentida já não é mais dor duida, é horror de matar o cristão sem piedade. O gelo inexistente brinca nos ossos subindo e descendo como gangorra de parque infantil. Ora sobe ao cérebro com força de empurrão de irmão traquino que quer ver a desgraceira do outro pelo medo e pela queda. Ora desce como tombo de avião que perde a pirueta e se estabaca no solo espalhando fagulhas multicor e fumaça de carvão amolecado transformado em pó.

Não há cobertor de lã, pele de bicho de avelã ou couro de lobo cinzento que espante o diabo do frio, que mais frio fica quando mais se pensa que está frio. Algo como potenciômetro ao contrário que aumenta quando se gira a roda para diminuir. Terrível esse frio. Consome a mente e debulha neurônios cabeça à fora tornando orbitais as meninas dos olhos e criando bolhas no olhar como bexigas de aniversário enchidas pelo compressor de ar.

Dor é essa que dói inesgotavelmente. Fria, gelada, congelante. É como faca afiada que vagarosamente penetra na carne rompendo a fronteira do externo se aprofundando na pele, abrindo caminho com um corte fino que adentra impiedosamente até tocar o osso e deixar correr o sangue quente que, neste dia, também é gelado como suco de uva de sorveteria de “nerd debutante”. Como e por que é fria a dor orquestrada pelo frio que faz e a conduz pelo corpo inteiro sem cerimônia alguma na agonia do desespero sem causa, ou por qualquer causa irrelevante?

Olhos esbugalhados, nariz avermelhado, orelhas congeladas, mãos petrificadas, pés em necropsia total e o resto desesperado como um pinguim que encara a bocarra da enorme baleia e sabe que em poucos minutos será transformado em passado com futuro inexistente. E a cada momento o frio parece disputar com a teimosia do corpo um jogo do tipo quem pode mais, mesmo sabendo que ele, o frio e sua concubina friaca, tudo podem e podem muito mais do que esse velho corpo desguarnecido de proteção natural e posto à prova como besta precoce que antevê a morte mas resigna-se com a punição oferecida como derradeira curtição existencial.

Não há como cobrir o frio da alma. Não há como aquecer a alma congelada. Não há o que fazer quando a alma se tornou prisioneira do gelo que destrói a vida. Almas geladas são paridas por cativeiros de decepções. São como a terra árida que nada produz a não ser sua própria aridez de revolta. São tal qual a escuridão gelada das noites de inverno rigoroso que a tudo consome e nada se deixa criar. São, e como são, a oitiva angustiada de um grito perdido não se sabe onde, nem quando, nem porque, ou mesmo se alguém grita silenciosamente. 

É frio, muito frio na alma, mesmo com o sol a pino.

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A cantada

(Paulo Estanislau)
  

Certamente aquela era pra ser apenas mais uma cantada. Daquelas que não são ditas para darem certo, são ditas apenas para serem ditas. Desculpem-me os amigos se eu insisto, mas existem cantadas que são dadas apenas para serem dadas e ponto final.

O único problema é que essa, dada por um amigo nosso, antes de ter um ponto final, teve vírgula, interrogação, exclamação, trema, etc. Por falar em trema, ele tremeu. 

Nosso amigo ficou de tal forma impressionado com a beleza daquela jovem, que ao cruzar com ela em um shopping da cidade não resistiu e soltou a seguinte pérola em forma de cantada:

-- Se eu fosse vinte anos mais novo lhe pediria em casamento. –

Antes de contar o resultado do insólito fato, vamos descrever os protagonistas aos amigos leitores, até para facilitar avaliações, aos interessados em futuras cantadas. 

Ela, vinte e poucos anos, aproximadamente um metro e setenta de altura, pele morena da cor de castanha de caju levemente assada, cabelos longos, corpo riscado por Niemeyer e esculturado pelos Cooper feitos no Parque da Cidade, olhos verdes tal qual o mar de Porto de Galinhas e com uma elegância e charme no andar que faria inveja a qualquer Gisele Büdchen. 

Ele, exatos quarenta e nove anos, casado, com um abdômen ligeiramente avolumado, ligeiramente é por minha conta, para não denegrir a imagem do nosso amigo, esculturado pelas cervejas e costelinhas do Amigão, bar do nosso amigo Rubens. 

Certamente ele deve ter pensado: “Ela jamais dar atenção a qualquer coisa que eu lhe diga”.

Voltando ao que interessa; ele, ao cruzar com aquele exemplo de beleza, repetindo, soltou a pérola: 

— Se eu fosse vinte anos mais novo, lhe pediria em casamento. –¬ 

Ela, parou, olhou em seus olhos, esboçou um leve sorriso e disse:

--- Se eu fosse pedida em casamento por um homem como você, aceitaria. – 

Chão – Plano; piso; terreno em que se anda; solo; pavimento; porção da superfície da terra...
Faltou! Sumiu!
Asas – Membros das aves guarnecidos de penas; grande barbatana peitoral de alguns peixes; qualquer expansão que lembre as asas das aves...
Ele não as tinha. Precisou! Mais que precisar, desejou ter como jamais desejou qualquer outra coisa.
Não correu, pois as pernas paralisaram, congelaram. Nunca a expressão sorriso amarelo teve um significado tão forte.

Ela, sentindo que acabara de provocar um acidente de lesavoz e vendo que aquele diálogo caminhava para um triste monólogo, retirou-se piedosamente.

Não se sabe, até hoje, que motivos levaram aquela bela jovem a pronunciar frase tão aterradora. Se ela aceitaria ou não jamais se saberá. Qualquer coisa que se diga nesse sentido não passa de mera elucubração. No meu modesto entendimento, aquela frase tinha a intenção de causar o efeito que realmente causou ao nosso amigo. Até hoje, passados cinco anos do fato, ele, não emite qualquer gracejo às jovens, independente da beleza ou idade.


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